quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Rua da Misericórdia

O que eu te queria mesmo ter dito, ainda há pouco quando falámos ao telefone, é que me fazes uma falta do caraças. Sempre a fizeste. Mas não. Enrolei-me outra vez em falinhas mansas, diz-que-disses, banalidades, histórias-de-outros, lugares-seguros, e fugi uma vez mais ao óbvio. É sempre assim. É tão visceral esta vontade, que de tão grande me emudece sempre que a tento pôr cá para fora.

Quantas ocasiões tivemos em que não me atrevi. Olhos nos olhos até me faltar a coragem e a voz. De sapatos na mão depois de dançarmos os quatro até cair, com a manhã a despontar na planície. Na comoção de um velório à porta da igreja de São Mamede, a chorar-te nos ombros as saudades partilhadas. Enroscada no sofá dos jantares de amigos com o frio a fazer-nos sentir de perto o respirar, enquanto os outros se aqueciam de pé nos cubos de gelo dos wiskyes com água-lisa. E também noutras estações. Na cumplicidade das férias a casais com as toalhas coladas lado-a-lado a divagarmos nos livros ainda a meio. Noutras latitudes com lareiras das semanas de neve, quando todos já tinham ido para a cama e tu ficavas para a última brasa no pretexto de não me deixares sozinha com o Baileys. E na urbanidade de Lisboa, a seguir ao filme certo que estreávamos, porque estavamos condenados a ser os únicos que tinham paciência para coisas faladas em francês. E também doméstica, depois do teu Sporting vencedor, em que aparecias lá em casa para celebrar e te deixavas ficar para além do Francisco e das suas horas certas de deitar. Muda no beijo da despedida, em que deixava escorregar a boca para te tocar o canto húmido dos lábios, sôfrega que rebentasses tu com o silêncio. E sempre, sempre, quando me agarro, como hoje, à tua voz lá longe e espero o momento certo de tossir este sufoco que me arranha a garganta. Sinto que me esgotei nas oportunidades de tantas maneiras para encontrar a ocasião certa. A pirueta, o salto-mortal ou simplesmente o abraço, para te vomitar esta vontade incontrolável que me aperta-espartilho o peito, desde que te conheci gaiata no sétimo ano dos Salesianos. Nunca tentei e falhei sempre.

Queria tanto conseguir falar-te dos equívocos de uma vida inteira a aturar-me a mim num papel que não deveria ter sido o meu. Dizer-te que os filhos que pari era suposto serem os teus. Nas noites de idas às urgências era a ti que eu imaginava a levar-nos à porta e a esperar do lado de fora atafulhado em SGs. E nos programas de idas ao circo era a tua língua que me apetecia
a lamber-me os dedos de algodão-doce-besuntado. Nos brindes das passagens de ano as tuas passas que eu queria na boca. Como eu gostava de te conseguir falar destes papéis trocados, em que sempre te suspirei protagonista e não este quase-figurante sem direito a aparecer no genérico. Dizer-te que no casamento da Mafalda eras tu que a devias ter levado ao altar engalanado. Na morte do meu pai era a ti que cabia limpar-me as lágrimas de todos os rancores e coisas por confessar. Queria-te relatar minuto a minuto uma vida amargurada porque era suposto ser o teu nome a aparecer nos envelopes, que ainda vêm parar por engano ao 5º Direito, passados tantos anos. Gostava tanto de te conseguir falar de tudo isto aqui sentada à mesa da cozinha, enquanto espero que a chaleira apite uma vez mais. Nunca consegui. Falhei sempre.

Desligo a chamada irritada e revejo novamente estas cenas do meu teatro-vida, que sobe ao palco num recorde de exibições inigualável. Sem ponto. Sempre com uma branca na parte decisiva do enredo. Suspiro na esperança da vez em que o pano caia e, depois dos aplausos breves, te encontre-de-flores-na-mão na desmaquiagem do camarim.

Pouso o telefone. Deambulo na infantilidade de achar que, por artes-mágicas, me irás bater agora à porta, de malas na mão, e ocupar o teu lugar na cama e no elenco do cartaz. Pressinto a tua solidão. Confirmo a minha. Agarro novamente o telefone decidida a voltar à cena, mas não consigo que me saiam as primeiras palavras pelos dedos. Perco as forças e fico-me, como sempre, na inconsequência do pensar.

Tem misericórdia de mim. Tem piedade. Liberta-me desta agonia. Põe-me tu as palavras e os teus beijos na boca e rasga-me o pano para que a peça possa finalmente começar.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Rua das Fontes

Pinto distraída e as horas passam em zonas de tinta que desconfio não ter sido eu a usá-las. Manchas de cor aparecem na tela como se soubessem sozinhas onde se posicionar. Instalam-se decididas, sabendo por magia o seu lugar destino. Numa coreografia combinada em dias reais. Não recordo os castanhos, os cinzas ou os vermelhos mas tenho ideia de um negro, nos contornos poucos, jogando às escondidas com a luz no meu pulso.
Sonho-te em pinceladas enquanto nem uso pincéis. É na base da espátula que estás, ora grande ora em apontamentos imediatos para que te identifique em devaneio limpo. Tudo automático como se a minha mão não estivesse presente. Até o cansaço me esquece e o trabalho faz-se pássaro cujos movimentos já me entretive inúmeras vezes a seguir. Nem me ocorre que hoje sou pardal e tu água fresca em pingos escorridos de cor. Mas acontece. E debico as tintas sobre os sonhos em fonte de ti.

Distraio o olhar janela fora e vejo o meu companheiro de tantos anos, abeto em fundo de rio, sempre de braços abertos. E com ele, os meus voos, libertos; transportando nas asas a vida, à tela. Por um momento regresso e à minha frente encontro imagens belas em tricolor. Como tinha concebido em dia de chão.
Molho o bico nas águas da fonte que colho em voo rasante. Retorno as vezes necessárias até alcançar a frescura a estampar-se nos óleos. Acabo contigo estas obras pintura e fico-te grata pelo que consigo.

Preparo nova série, dias mais tarde, com o mesmo tema desta vez em coloridos mar. A mesma coisa. Mágico. Afinal não foi fantasia. Mantenho-me pássaro e sobrevoo-te nas formas livres dos meus movimentos. Vão directas em escorrega do coração para as manchas azuis e verdes que a água da fonte ilumina intensamente. Reconheço-te no resultado em obras baptizadas e repintadas vezes sem fim, onde a noção do empenhamento se desviou para ti. Faço agora só contornos. Experimento desta vez os vazios. Que se enchem com o olhar daqueles que vestem os sentidos. É o peito em tambor. As palpitações em pandeireta. E a tela a sorrir-me na alma. Pois também desta vez foi contigo que a consegui.

Rua da Zanguella


Tinha aquele hábito de entrar de rompante, porta a dentro no café como se o espaço fosse seu e as pessoas peças sem energia aparente mas que dia sim dia não transmutavam. Naquela vez, ia mais decidida do que nunca; elevou o punho à laia de microfone e disparou: “é tudo matemática, é tudo aritmética, física, metafísica, astrologia ou até poesia para quem o quiser, desde que se conheça com sinceridade a filosofia”. Micaela lia os rostos, indiferente, pose digna, teatralizava: “formas e fórmulas, molduras, padrões, etiquetas, levaram anos a construir, deram trabalho a conceber, para que qualquer de nós resolva estragar a maquilhagem da realidade a seu bel prazer”.
Elevou-se, trepou para uma cadeira e gritou: “ouçam o que vos digo: quem julga que basta decidir ser livre, desengane-se, pois agonizará para sempre, e dolorosamente”. Os clientes do café olhavam estupefactos, não queriam assistir a desconstrução alguma nem tão pouco ouvir aquela maluca. Tentaram distrair a atenção, retomaram as conversas, as leituras, os cafés, as alegrias.
Micaela era vistosa. Vestia saia justa preta, botas altas da mesma cor e uma garrida camisolinha listrada. Das orelhas pendiam uns brincos histéricos em latão dourado e as pestanas eram semi-círculos de gata a abrilhantar os olhos miúdos. Mas, se dava prazer olhá-la, melhor ainda era ignorá-la. Só que ela continuava: ”eu, colecciono rótulos, amo estereótipos, escolho estilos e enquadro-me por direito à normalização”. E dito isto, sem dar tempo às pessoas de ripostar, pôs-se a circular de cliente em cliente alterando o mais imediato. Retirou os livros ao rapaz do canto e pousou-os na mesa da senhora velhota, despiu a boina da adolescente e vestiu-a ao homem metro encostado ao balcão, tirou o xaile freak à morena e colocou-o aos ombros da loura executiva…saltitava, chacoteava e ria-se nesta dança de improviso veloz que interrompeu bruscamente. Suspirou cansada como em qualquer actuação e imobilizou-se. Estática. Séria. Até que por fim fez uma vénia alongada. Os clientes do café da zanguella esperavam. Deixaram escoar um minuto comprido. Todos se entreolhavam como que aguardando o sinal dum maestro imaginário e de súbito num coro sincronizado soltaram imprevistas gargalhadas que só pararam para substituir por palmas e pateadas.

Micaela lança então um sorriso rasgado e caminha para a saída acrescentando em tom de apoteose “se tivessem juízo saíam todos; porque tudo o que vêem é mentira, o que ouvem, o que lêem, é mentira, até este café não existe”.
E partiu sabendo perfeitamente que nem sequer tinha ali entrado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Travesssa de Roma


Rafael pensava sempre naquele homem-equação antes de se aventurar na tela. Ocorria-lhe aquela imagem quando começava a afiar as ideias, a faca e lascas, na ponta do lápis de grafite. À sua frente o cavalete já preparado com o vazio insuportável em formato setenta por cem. Sobre a mesa uma infinitude de pincéis, esponjas, tubos e uma paleta com os restos do passado, em histórias secas que não chegaram a ser. Concentrava-se no emaranhado de linhas e conceitos, que haviam de vir, enquanto iniciava um diálogo surdo com aquele homem que lhe ocupava agora a cabeça e as mãos. Era uma obsessão recorrente. Um vício, mesmo. Sempre que se preparava para atacar a tela em branco não resistia e puxava à sua memória o desenho primordial, ícone da perfeição - o Homem de Vitruvio. Primeiro esperava que ganhasse definição e contornos até ficar circunscrito e arrumado na exactidão do seu círculo-quadrado. Via-o tomar as proporções certas, magistrais, de braços e pernas esticados numa tangente universal. Divertia-se depois a fazer com que aquela figura começasse a andar à volta sobre si com as veias do pescoço a dilatar. No início o movimento era equilibrado, fazendo daquela roda-viva o esplendor possível da beleza. Fechava os olhos e insistia até que a imagem começasse a girar com velocidade. Mais velocidade ainda, até que os cabelos-longos-caracóis se abrissem em juba e as suas 4 pernas ganhassem vida própria e transformassem, num ápice, aquele homem-músculo num animal de circo. Amedrontava-o esse instante-fera antes da cena passar ao movimento perpétuo que a seguir o hipnotizava. Vinha-lhe então o enjoo e sabia que a partir desse instante passava ele mesmo a ser todo esse rodopio imparável. Rafael precipitava-se na vertigem da fusão e arrepiava-se, com o palpitar na pele, das proporções exactas da matemática dos corpos. Sentia-se fórmula. Possibilidade infinita. Corpo transcendente. Estava alucinado pela pressa dos pensamentos sobre si mesmo. Era finalmente no centro de tudo. Tomado agora pela clarividência, sabia exactamente o que fazer a seguir. Parar e libertar-se uma vez mais dos seus limites de quadrado-círculo. Via-se estático de braços abertos, pernas hirtas, e então esticava um pouco mais as mãos para agarrar com força a circunferência. Puxava-a toda para si até se partir. Aí enrolava essa linha-circulo num novelo, até não haver mais raio que se visse. A seguir passava ao mais difícil. Dar a volta ao quadrado. As forças vacilavam-lhe sempre quando lá chegava. Um desafio de Hércules esse de sair da caixa. Distendia-se todo no auge das suas energias e partia um dos vértices até sentir o ar fresco a entrar-lhe pelo desalinho dos cabelos. Puxava determinado pelas quatro linhas e juntava-as de seguida às outras. Já não lhe restavam mais limites. Ele era agora a equação total que lhe permitia recriar-se até ao infinito. Depois pegava no seu novelo e começava a desfiá-lo até ser uma linha recta até ao fundo de si. Metia-a com cuidado no interior do lápis acabado de afiar onde todas as suas limitações-circulo-quadrado seriam agora todas as suas possibilidades em grafite. Era com elas que iria desenhar. E nesse exacto momento saía para a tela e pintava a imensidão da sua alma.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Rua Menino Jesus


Lembro-me inúmeras vezes de ti. Chegas até mim pelas razões mais diversas e avulsas pequenas referências que a alma colhe daqui e dacoli sem interessar porque é assim. Às vezes até começo a falar como tu, dou por mim a dizer aquilo que não gostava realmente de te ouvir; caio nessas afirmações, reacções, gestos ou comportamentos-herdados, coisa de genes, mistérios humanos, surpreendo-me, mas por outro lado vejo nisso a aproximação do amor que te terei continuado. No outro dia, dei uma gargalhada maliciosa, igual em tudo às tuas. E ri interiormente hesitando entre a contrariedade da versão que uso do que te criticava e o aconchego de mim em ti que me trazes certamente ainda ao colo. Larguei cedo o cordão umbilical, eu sei, mas houve sempre uma cumplicidade especial entre alguma parecença de nós. Quando um amor assim enorme parte ficam mais afloradas as guloseimas do coração . Pode ser sobrevivência afectiva ou gula eterna mas enche o nosso peito dum calor doce e intenso que tempos e vidas depois continua sem idade.

Estamos em época de Natal. E Natal és tu sempre connosco. Mas este ano, em altura de todas as recordações, há mais memória de ti pelas ruas. Há novidades nas cidades, há estandartes vermelhos com a figura do Menino Jesus espalhados pelas varandas e janelas dos católicos, a enfeitar as casas que se transformam desta forma em lares. Lares em Cristo. Tu irias adorar. Não posso dizer que seja tão animado, festivo ou fascinante como as milhares de bandeiras de Portugal que se viram espalhadas país fora durante o “euro” que isso é inultrapassável, foi emocionante e lindo de se ver, era de todos os portugueses e não só de alguns. Mais maravilhoso pelo seu significado só mesmo o branco vestido por Timor. Mas estes meninos também são bonitos, sim; tenho pena que não estejas cá para os ver. Comprarias logo uma dúzia e darias aos teus filhos e netos ou talvez dúzia e meia que eles já são muitos e a verba é para ajudar como tu gostavas.

Sabes? Antes de me pôr a criticá-los naquela minha pressa opiniosa com a qual por vezes te aborrecia, resolvi sossegar um pouco, reflectir sem urgência, e de ideia em ideia fui subindo uma escada rolante que me conduziu até ti. E assim, por ti, mãezinha querida, resolvo ficar calada e não dizer por aí aquelas coisas que me saem esbaforidas de trás para a frente em cachoeiras à flor da pele; antes escolho transformar estes estandartes em bocadinhos de ti que tanto amavas o Menino Jesus que nasceu, cresceu e foi sempre o teu Pai do Céu.

Há uma Rua Menino Jesus, em Évora, não sei se sabias. Hoje essa rua é tua. Digo-to eu que estou lá neste preciso momento contigo. Caminhamos satisfeitas como antigamente de braço dado para não escorregares nas pedrinhas mais polidas da calçada.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Rua da República

Altas horas da manhã. Passaria das 4. Não se atrevia sequer a olhar para a angustia do despertador que não tardava o iria arrastar para outro dia de olheiras-de-fato-e-gravata. Fim de sono por decreto a bem da nação. Estava a dar cabo dele aquela vida itinerante de eurorapaz a peregrinar para Bruxelas semana após semana. As emissões de CO2 das milhas que se acumulavam no cartão de passageiro frequente, reentravam-lhe agora pelas narinas e sufocavam-lhe a respiração. Sentia-se com falta de ar. Com vontade que alguém lhe pusesse vick no peito e o mundo ganhasse novamente cheiro a mentol e eucalipto. Puxou mais para cima o lençol para chegar aos 7-anos-mãe-hoje-não-vou-à-escola-que-me-dói-a-garganta. Tossiu. Pigarreou para legitimar para si próprio que era real aquele arranhar todo que o incomodava por dentro. Puxou ainda mais o lençol e ficou escondido lá debaixo na esperança de passar despercebido. Nestas ocasiões achava sempre que devia ter seguido os passos que lhe tinham destinado no berço. Vida pacata. Café no Arcadas do Giraldo. Sesta no verão. Sábado de jipe a distribuir a jorna na herdade. Noites de mal-dizer o ministro da agricultura e dias perdidos no sufoco dos projectos, dos subsídios, das finanças. Um rancho de filhos vestidos em Badajoz, Touradas às quintas em Lisboa. Caçadas aos domingos. Javalis nas noites de lua cheia. Seguros das colheitas. Cortiça de 9 em 9 anos. Carro novo. Barriga a mais. Férias reforçadas. Cabelos a menos. E vinho. E lareira. Mas não. Preferiu os sobrinhos. E a Lisboa a tempo inteiro com a politica a dar-lhe trezes nos cadeirões de direito, que não lhe restavam horas para mais. Fez os amigos certos. As amigas erradas. E trepou por elas. E agarrou-se a eles. E subiu até aos 30 mil pés das idas semanais para a Bélgica, ou a França e mais as comissões especiais que às vezes lhe traziam o prazer do sol mais ameno do lado de lá do Atlântico. Enroscou-se assim que ouviu o som estridente do galo, que não lhe dava tréguas, a dizer que a manhã estava aí a rebentar. E ficou sossegado. A suster a respiração. E subitamente ouviu um som que não lhe era de costume. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco vezes. O sino da Sé. As boas notícias. Afinal não ia haver hoje nenhum avião para apanhar. Era Évora. Era Natal e o tempo dele ser novamente o menino. Daqui a pouco não ia ter o taxi à espera para o levar para o aeroporto entre semáforos cheios de gente aborrecida à espera de engatar a primeira. Podia dormir. As torradas da Josefa iam esperar quentes para lhe dar por dias o sabor da vida que optou por não trincar.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Rua do Cano


Contavas-me que em miúda quando ias em passeio de automóvel com os teus avós, atravessando aldeias, campos e abandonos, invejavas as raparigas que vias à beira das estradas. Admiravas as cores garridas dos seus trajos e questionavas invariavelmente para onde iriam quando te pareciam tão afastadas de tudo ali perdidas no meio daquele espaço imenso. Imaginavas contudo uma vida sã estampada naquelas bochechas geralmente rosadas e cheias. Confundias ruralidade com liberdade, simplicidade, lareiras e prazeres donde partias para o que julgavas ser a felicidade. Demoravas horas de nariz colado ao vidro viajante, inventando histórias de família, feiras com bailarico e parcerias de amor. Sempre com aquela ideia da concertina agarrada à tua imaginação.

Chegavas a casa nauseada com a alma empurrada para a realidade que trazias do passado, num amuo descabido pela sorte que envergavas. Desejavas atirar o teu berço pelo cano abaixo e amaldiçoavas as raízes que nascidas contigo empurravam as ideias para o topo do sobreiro que crescia em forma de aqueduto no teu próprio jardim. Circulavas lá por cima e dançavas nos seus ramos com sorrisos parvos, distraídos, em trejeitos alternados com fantasias em holofote sobre esplendorosas acrobatas de circo. Duma forma ou de outra o movimento aparecia-te circular, simétrico, labiríntico. Sempre suficientemente veloz por forma a roubar-te tempo para que te incomodasse menos assim. Nunca percebeste que força era essa, porque querias muito esse tempo para te debruçares sobre o acaso do teu espaço que também era enorme. Era, julgo eu, a força da berlinda a perder vantagem para a da acomodação, obrigando-te a virgulas e reticências já que te vias incapaz de a contornar. Eras dura contigo e criticavas-te pela inutilidade desses pudores. Empurrando-os num ápice de seguida pelo cano abaixo.

Nessas alturas de poesia abdominal engolias o pó das memórias e caminhavas horas a pé para te limpares desse lado que eras tu. Corrias contra os ventos até à expulsão extrema dos fantasmas que conseguias, assegurando somente a permanência do que realmente valia a pena.
E aí bailavas com fluidez sobre as palavras, temperamentos ou acordes junto aos amigos do teu próprio circo. Engrandecias liberta de padrões e manias, transformavas-te em bailarina de desejos sonhados e partilhas uníssonas. Saltavas do sobreiro patriarca e descias à terra como se subisses aos céus.

Agora, transformaste as memórias em música e nunca mais te surgiu a ideia inútil e estúpida de as deitar pelo cano abaixo. Não mudou grande coisa, deliciaste ainda ao som da concertina; apenas lhe acrescentaste umas teclas, uma maior caixa de fole, umas novas vibrações e divertida gingas o corpo ao som do acordeão.

Rua Nova

Lido com ligeireza trata-se, de caras, de uma sereia com cabeça de cavalo. Ou de égua. É indiferente, que as sereias são como os anjos – o sexo só se discute. Não se desfruta!

Pelo menos a sereia com quem convivi desde a idade de berço, tinha cara e tronco de mulher. Assim, como deve ser. Estava instalada – como agora se diz – juntamente com elementos do seu habitat imaginário, na parede do alpendre da casa de férias. Obra de uma ceramista amiga da família, dava o nome à casa, embora não houvesse qualquer toponímia. Foi vendida com a casa. Afinal como se poderia vender a casa da sereia, sem ela? Não seria a mesma venda.

O que parece claro é que, de homem não se trata. Um homem não escolhe ser sereia. Ou melhor, a generalidade não escolhe. Alguns escolherão, mandam as regras da tolerância. Mas não nos desviemos. O que escolhe é ser dragão ou unicórnio. Os primeiros, muito populares a norte; os segundos, por todo o lado, já que bicórneo, ninguém quer parecer.

Porém, se lermos atentamente, a criatura parece bicéfala. Repare-se que não perdeu a cabeça e juntou o seu tronco a uma cabeça de cavalo. Antes juntou o corpo a uma cabeça com cauda de sereia que, como sabemos, é igual à do robalo ou do salmão. É uma questão de gosto ou, do que estiver disponível na praça. Assim como, a tão na moda, “cozinha de mercado”. As escamas, de serpente em vez de peixe, devem-se à coquetterie das sereias; só serpentes e afins mudam de pele, o que lhes permite as mais variadas toilettes ao longo do ano.

Afastada a hipótese de se tratar de um homem, mesmo com h pequeno, resta-nos a certeza de ser uma amazona. Trata-se seguramente de uma mulher que monta com grande finura, ao ponto de juntar a sua cabeça à do seu cavalo. O que a distingue é, em vez de casaca, enverga uma capa de lamé que se confunde, esvoaçante, com cauda de sereia e brilho de serpente.


(Este texto , extra-blogue-mas-já-agora-também-serve-e-publica-se-na-mesma, teve como mote o seguinte TPC dos co-autores aqui do burgo:


" À primeira vista não passava de um ser que juntara o seu corpo humano a uma cabeça equina, com cauda de sereia
e escamas de serpente"
Humberto Eco
= o que aconteceu a este homem para se transformar nesta criatura?
)



Outro AQUI e o outro ALI

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tavessa da Campina

Lá ao fundo começava a campina! “Planície extensa sem povoações nem árvores”, segundo reza o dicionário de língua portuguesa mais consultado na Net. Hoje, a definição não se aplica. Só se tivessem deslocado para fora de portas, a Travessa. Ou, nem isso! As árvores – palmeiras, sobretudo – mais que muitas e as casas dos resorts de luxo, cem vezes as dos montes. Tá bom de ver!

Obra do Alqueva. O lago, como sempre, é o maior da Europa. Pode regar a relva dos campos de golfe que dão mais do que os borregos, no Alentejo. Quando foi construída era uma velha aspiração dos agricultores do sequeiro. Como levaram tanto tempo a fazê-la, os ditos morreram sem não antes passarem pelas aventuras dos anos setenta que muito os maçou e depois por todas as PAC que muito os acomodou ao dolce fare niente que a União inventou para substituírem os ranchos por empregados de escritório e o feitor por técnico em regulamentação agrária. Os agricultores não têm culpa nenhuma. Isto assim dá mais jeito aos da cidade.

Então, os aldeamentos turísticos geram emprego no Turismo e antes, na construção civil. Geram mais crédito à habitação e criação de instrumentos financeiros como os fundos imobiliários onde se pode aplicar o capital. Para não falar dos time-sharing. Os trabalhadores rurais viram jardineiros, os aguadeiros como uma curtinha reciclagem viram barman. A Base Aérea de Beja, aeroporto internacional, desafogando a Portela e assim Alcochete já não faz falta e isso se calhar já é mau para os construtores que entretanto já tinham feito o alargamento de Beja. Não de pode ter tudo. Agora, a LTU, famosa companhia de charters germânica transporta uma carrada de alemejanos, como lhes chamam carinhosamente os alentejanos. Habituados às cálidas águas de Palma de Maiorca, quando eram mais pequenos, trocaram a praia pelo golfe, a canoagem e a pesca do achigã.

É vê-los depois de uma partida de quatro buracos e meio – 25% do que era habitual – porque agora o que interessa é o taco da manhã. Hábito importado da caça, o taco é a paragem para o pequeno-almoço e inclui normalmente umas tirinhas de presunto e uma linguiça e farinheira assadas acompanhadas de um belo branco alentejano que estão cada vez melhores, por influência dos alemães que os querem mais frescos e menos alcoólicos que os dos primórdios. A seguir ao taco são mais quatro buracos e meio e almoço no Club House. Uma bela açorda feita pela campina – a da Travessa – que embora o marido tenha deixado de tratar do gado bravo e agora guie cortadores de relva não deixou que a mulher – cozinheira de mão cheia – perdesse o nome como ele a profissão.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Rua do Escrivão da Câmara


Vou-te escrever até que o tinteiro se gaste. Até que não haja já mais nenhuma gota azul para sair, certeira, pelo bico do aparo e se transformar em palavras de amor. Aposto que já reparaste que voltei ao passado das canetas de tinta permanente, aparadas a ouro para escrita fina de salamaleques e cornucópias. Gosto deste romantismo senil. Desta prosa que me sai com patine emprestada pelo personagem que levo à cena. Dá-me gozo esta coisa de cofiar os bigodes de século dezanove, que também deixei que me crescessem, e que me dão agora este ar aristocrático de alfinete de pérola a rematar a gravata de seda. Penso em ti. Penso-te ali na fotografia que emoldurei com um passepartout exageradamente grande para que me lembrasse do oásis que és, quando te vejo pequena, de monóculo em riste. Reclino vagarosamente a cadeira e sinto o prazer no ranger da madeira antiga a dar de si. Tranquiliza-me este som familiar que ouvia em pequeno no escritório de meu pai. Repouso as mãos no tampo e deixo que os dedos afaguem ao de leve o polimento. Vejo-o novamente ali nos meus gestos repetidos de mãos iguais. Ajeito o mata-borrão cheio das memórias difusas dos meus avós que não conheci. Decidi agora que a minha existência seria isto de ser antigo. Deixei que o romantismo descesse sobre mim e me adornasse o cachucho que trago de herança falida nas armas das duas águias, hoje embalsamadas, e um torreão, agora uma ruína Vesti esta pele de jaquetão e polainas para convenientemente ilustrar as vontades de te cantar numa elegia. Reclino-me um pouco mais. Estico-me confortável e deixo que me estalem as falanges à sua vontade. Precisava deste teatro ao espelho para te trazer à vida. Para te trazer da ponta-da-língua à redondilha da estrofe. Escrevo-te os poemas que nunca ousei dizer. Pensar. Porque sei que os não lerás. Porque agora sei que os não escrevi a tempo. Endireito-me de supetão. Hirto. Volto à escrita. Deixo que rebentem sílabas. E versos. E que me saiam pela ponta do tacto todos os sentidos com que nunca te toquei.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Rua da Moeda

A prata reflectia-se naquela rua atapetada em cambiantes de brilhos. Quando o sol se esparralhava descontraido, a luz tornava-se demasiado intensa ao ponto de ser impossivel circular. Além disso a calçada enchia-se de vaidades ameaçando queimar. Transformava-se num maravilhoso vulcão urbano, um caleidoscópio de pontos furiosamente luminosos. Seja como for nesses dias os corpos estagnavam hipnotizados à boca da rua, incapazes de largar o olhar, fascinados..
Foi num dia assim que apareceste. Eu vi-te tal como te estou a ver agora. Não tinhas idade nem contornos nítidos, eras lindo sem definição. Parecias sem reflexos embora transmitisses de tudo um nada. Faltava-te apenas qualquer coisa que te elevasse a mais. Isso nessa altura em que havia o vulcão. Depois a rua fazia-se prata, mar espelho em dias onde a névoa é magia. Era igualmente impensável pisar beleza assim. Mas não para ti; desta vez permaneceste ali com a tua energia teimosa; começaste a atravessar a calçada de brilhos cunhados e desequilibraste a harmonia das coisas. Eras um poeta de mil cunhagens onde não se lia palavra alguma. A calçada, Rainha da rua não te perdoava. Em passadas decididas, ou nem tanto assim, pisavas as moedas que brilhavam sob os teus pés. Sabias onde ias, querias chegar ao lado de lá. Mas um fenómeno ia ocorrendo à tua passagem: conforme caminhavas deixavas o brilho para trás e, da rua que te faltava, a prata escurecia-se como luzes apagadas. Nem te apercebias. Seguias como um cego cuja única preocupação é chegar sem esbarrar. E não esbarraste. Desapareceste. Amante do belo sem dar contas de nada fechado na realidade que eras tu. As varandinhas bordejantes olhavam-te com malícia, expectantes; as casas caiadas de brancos variados observavam sem te avisar…que aquela moeda, aquela mesmo, a mais vistosa de todas entre as que olhavas atapetando o chão..era o ralo das moedas pisadas até então. Agarraste-a, emocionado, era única de facto; mas esvaziaste com esse gesto a rua em que seguias. As moedas foram sugadas mal se viram sem o ralo que retiravas, e tu seguiste com elas, desprovido da virilidade contrária à força da sucção. A moeda que apanhaste? pouco a tiveste na mão. Atiraste-a ao ar no meio da atrapalhação. E ela ainda hoje lá está. Em placa que merece distinção.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Travessa de Santa Marta

Descia, gaiata, a rua enquanto saboreava na ponta da língua as ultimas palavras da noite. Eram para aí três da manhã e aqueles últimos minutos de conversa com o João, ali à porta do 34, tinham-lhe tirado o sono. Regressava a casa só, abanando as ancas impeciente e procurando a sua sombra, ora grande, ora pequena, no chão negro da calçada. Saltitava da direita para a esquerda, brincando consigo, dividida entre o saber que não e a vontade inabalável do sim. Esperava que aquele passeio, só por si, lhe desse o embalo para a acalmia. para que depois, um simples chá de camomila, lhe fizesse o resto até ao amanhecer. Mas não. Definitivamente aquele ar fresco que agora lhe subia pelas pernas não era suficiente para lhe apagar o incêndio ateado no 34 da Porta de Moura. Sorriu e imaginou-se a ligar o 112. Bombeiros. A Protecção Civil a declarar um amarelo de perigo. Um vermelho de sangue. Urgência publicada no eco de cada um daqueles passos a acordar as gentes. Imaginou que se assomavam às janelas, sonolentas, de balde na mão, extintor. E lhe jorravam por cima a desvontade.

- Atirem-me água fresca! Implorou e sorriu-se para si ao virar mais uma esquina. Fervilhava por dentro. E pouco mais havia a fazer que engolir em seco. Era impossível consumar aquilo. Tarde de mais para dar meia volta. Estava quase a chegar a casa, ao número 20 da Travessa de Santa Marta. Mas a vontade estava a dar cabo dela. Não sabia mais o que fazer. Subitamente ouviu a badalada seca do relógio da Sé. Uma única badalada. Providencial. Um acordar dos sentidos. Eram exactamente três e um quarto da manhã. Realizou, com um suspiro vindo do fundo de si, que afinal ainda não tinha passado assim tanto tempo. Que não era tarde. Que chegaria provavelmente a horas de os encontrar e deixar que o prazer desfizesse o resto.

- Que se lixe o decoro e as boas maneiras das dietas da carne! E assim, acometida pela tentação anunciada pela pancada solitária do sino da Sé, percebeu que não era demasiado tarde para voltar atrás. Deu meia volta e correu. Correu. Correu muito. Correu até quase se lhe acabar o fôlego. E ao chegar à Porta de Moura, rasgou-se por dentro de vontade ao perceber que ainda lá estavam todos à sua espera. Disponíveis, inebriantes e quentes. Sem pedir licença entrou de rompante no 34. Despiu-se de pruridos e mandou-se a eles. Atafulhou a boca toda, numa orgia sem igual, de pastéis-de-nata acabadinhos de fazer. Ouviu as duas badaladas no sino da Sé ali ao lado. Agora sim. Podia ir dormir com os sentidos em sossego, não havia mais fome que lhe tirasse o sono.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Rua do Cenáculo

Mordo o anzol sem me aperceber que aquela palavra tão redonda e cheia só podia ser um isco. Mordo sôfrego, abocanhando cada uma das letras sem as saborear de tanta pressa. Dói-me agora o céu-da-boca e sinto que na ferida do anzol se escava e abre por dentro um canal directo até ao hipotálamo. Fui tramado pela fome. Começo agora a sentir a cabeça a andar à roda. E sinto um remoinho de pensamentos a cair por esse buraco-ralo até à minha boca. Saem-me aos soluços, da cabeça aos lábios. Escorrem depois e ganham vida própria assim que se sentem soltos. Continuam em catadupa a brotar de dentro, raspam o cortex e passam a ranger-me os dentes. Abano-me. Tento fugir. Canso-me. Desisto. E acordo estremunhado. Deixo que me saiam os últimos, enquanto abro os olhos, em golfadas, até que a exaustão de idéias se espalhe lago-largo desconexo aos pés da cama. Já saíram quase todos e posso agora, enfim, serenar. Soergo-me com cautela. Sento-me agora à beirinha da cama para poder observar lá em baixo, esse mar de pensamentos enrolados nos pés da cómoda, a subirem pela estante dos livros, vivos, a reluzir com os primeiros raios de sol que entram no quarto pelas frestas do estore. Não tarda nada vão aquecer. Vão aquecer a ponto de se evaporarem no ar e subirem ténues, em fumarolas silenciosas para todo o lado e voltarem a cair leves e a entrar noutras cabeças de outras cabeças. Esfrego os olhos e de consciência desperta percebo agora que têm vida própria e uma vontade irredutível de existir para além de quem os pensa. Senhores de si, sem pai nem mestre. Património universal, pertença de ninguém. Entendo finalmente, sentindo ainda o adocicado da palavra-isco a iludir-me as papilas, que existe para sempre um infinito eco de pensar que nos entra pelos poros e sai pela boca, eterno retorno sem principio nem fim. Fez-se Luz. Vejo-os começar a desaparecer na claridade do dia quente, de partida anunciada para cumprirem o seu destino universal. Livres. Perguntas-me qual a palavra irresistível, redonda, imensa, cheia de tudo que estava presa no anzol? - Respondo-te que foi o Conhecimento que mordi. Sabia a maçã.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Becco do Beiçudo



Não tenho penas, o que convenhamos se revela uma profunda chatice quando este corpo me pede cada vez mais para voar para longe daqui. Maldito Eco que me desenhou desengonçado e simbólico e sem qualquer utilidade. Gostava de ser mais do que esta montra reflexiva para outros. Signo e abstracção concreta e de discutível gosto. Gostava, já agora, de ter algum uso e proveito próprios. Ser um pouco mais que simples semiótica para fazer pensar outras cabeças. A minha, de facto, de pouco me serve com esta disformidade de ter de comer palha e, quando o rei-faz-anos umas cenouras. Aliás, eu sei, que essa coisa das cenouras foi a única razão para esta escolha. Motivo de sobra para fazer pensar o poder da recompensa na ponta-do-pau-futuro, razão para galopar para o desconhecido. Pôs-me também orelhas irrequietas a seguirem sempre o som das distracções das mensagens, o que me dá o desprazer de um grande desassossego e amiúde fortes dores de paciência. Se tivesse penas e asas saía imediatamente deste texto e ia dar um valente par de coices na gramática do Eco, isto se em vez de rabo de sereia tivesse cascos de gente. Mas não. Tenho é mais outros detalhes simbólicos de utilidade duvidosa e pouca praticidade. Rabo de sereira, para fazer pensar morbidamente na sensualidade-da-impotência-fatal-do-canto-impossível-dos-amores. Sim. A solidão do Eco feita cauda de bicho impossível de consumar e eu a ter de gramar com este desconforto de perna só. E não nos ficamos por aqui neste absurdo conceptual com que o Eco me escreveu, certamente numa deambulação onírica acordado a ver as constelações a desenharem-me no céu estrelado de Pisa. Vestiu-me também com a pele aspera de serpente, numa figura-de-estilo muito óbvia de mudança de estação. Estou farto deste não-ser. Desta sátira-sátiro a despropósito escrita numa noite de azia com a vida. Farto de ser semântica e semiótica. Preciso que me ponham asas ou me apaguem.. Queres dar-me uma ajuda?

(Este texto , extra-blogue-mas-já-agora-também-serve-e-publica-se-na-mesma, teve como mote o seguinte TPC dos co-autores aqui do burgo:

" À primeira vista não passava de um ser que juntara o seu corpo humano a uma cabeça equina, com cauda de sereia
e escamas de serpente"
Humberto Eco
= o que aconteceu a este homem para se transformar nesta criatura?
)

Outro AQUI e o outro ALI

Rua do Raimundo

Sussurraram-lhe ao ouvido o segredo do universo, o sentido da vida, o mistério de tudo. Estupefacto ficou parado, sem expressão e sem ter o que fazer a seguir.
O grande relógio do tempo parou subitamente deixando-o ali só, desperançado e confinado ao espaço de viver na eternidade das badaladas certeiras, a cada quarto-de-hora, do relógio da Sé. Então era aquilo. Aquilo que passou uma vida inteira a tentar descortinar era subitamente a mais vazia de todas as revelações. Não havia big-bang. Não havia sentido. Não havia mistério. O universo afinal não era mais do que um grande mal entendido feito por alguém que se esqueceu de colocar um ponto final no fim do texto... Por causa disso provocou um eco interminável, audível até aos confins dos tempos com o som grave da última sílaba da frase que escreveu. Afinal aquele estremecer que sentia quando apontava as antenas para o espaço profundo e ouvia o ressoar daquele som solene e sempre lá, o arrepio na espinha que sentia nas aulas de ioga ao ouvir o mesmo som, o estado de extase quando meditava com aquele mantra, não tinha passado de um grosseiro erro de pontuação. A chave que o fez perder dias a tentar descobrir os mistérios da vida e da morte e lhe deu alento e esperança para passar todas aquelas provações nos seus 78 anos quase feitos (não fora este sussurro estúpido que o finou no melhor da festa...), afinal não passava da insignificante ultima sílaba duma palavra, bem estúpida por sinal.
O “om” , aquele “om” misterioso e profundo que ele julgava encerrar em si tudo o que era, não-era e estava para ser, era afinal o som das silabas do "pompom" da história parva que um idiota um dia escreveu num bloque e se esqueceu de passar pelo corrector ortográfico... Uma omissão fatal, que acabou por dar azo aquele mal-entendido ao mesmo tempo que criou aquele mundo todo em expansão permanente, que Raimundo só conseguiu descobrir depois de chegar ao fim da sua história

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Rua Salvador Velho

Salvador passeava pela serra inspirando com gosto aquele ar gelado. Estava-se numa manhã das melhores que o inverno tem. Seguia os estalidos das folhas que calcava de propósito com as botas cardadas. Foi caminhando no prazer da paisagem, dos sons e dos cheiros, até ao limite de chão junto à base da cruz alta; o horizonte abria-se à sua frente num atlântico drapeado em pregas de luz. Ergueu os braços e soltou um grito de homem vivo; grato aos deuses. Adivinhava divindades ao seu redor mas não se demorava sobre isso. Não lhes conhecia as intenções mas cores e formas eram demasiado belas para questionar fosse o que fosse. A beleza estava ali, e ele e tanto.
Como não tinha a certeza de estar mesmo presente, apalpou-se para se reconhecer. Não se lembrava de alguma vez ter sentido tão forte a transcendência.
Inalava os primeiros momentos dum novo acordar, transvertia as emoções a seu belo prazer. Fazia-se cavalo em unicórino de si e deslizava como cobra pelas árvores do passado. O pensamento, esse, planava como águia senhoria dos céus. A seus pés, o mar, agitado e bruto. Não aquele mar que chega em passinhos de cânticos doces, mas o outro; aquele de ondas gigantes vestidas de branco e tocando tambores e trompetas. Forte e viril como ele, Salvador Velho.
De cabeça erguida, calçou a cauda de sereia e atirou-se às vagas. Em baixo, as águas abriram-se para o receber em maresia de mulher. Acolheram-no com carinho e ele deixou-se embalar. E o mar que lhe parecia macho lusitano era agora mulher. Salvador em sais de espuma no feminino. Rejuvenescendo como uma criança num carrossel de virgindades. Esquecendo formas ou intenções.

De olhos abertos os dois que agora eram, sol e lua, cheirando a mar. De novo na arriba, Salvador e o seu par; deitados no pé da serra. Sem se mexerem, sem perturbar o silêncio; drogavam-se apenas com o perfume que emanava dos eucaliptos. E em parceria desenhavam sonhos com os intervalos das folhas projectados no tecto de céu.
Tinha de haver deuses de facto, e estavam passeando por ali.

(Este texto , extra-blogue-mas-já-agora-também-serve-e-publica-se-na-mesma, teve como mote o seguinte TPC dos co-autores aqui do burgo:

" À primeira vista não passava de um ser que juntara o seu corpo humano a uma cabeça equina, com cauda de sereia
e escamas de serpente"
Humberto Eco
= o que aconteceu a este homem para se transformar nesta criatura?
)

Outro AQUI e o outro ALI

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Rua do Alfeirão



Calções de peitilho aos quadrados azuis e encarnados. Camisa branca, de manga-curta, engomada a rigor pela Maria Bernardina. Os joelhos todos escalavrados e as meias azuis a teimarem em escorregar pernas abaixo do elástico já gasto. Um míudo igual a todos os outros, a preparar-se para um futuro imaginado pelos pais, em inquéritos às notas à volta da camilha no fim de cada período.

- Vê lá que tens de estudar para ser alguém. Joaquim era dócil, bem comportado e um menino responsável como poucos. Gostava de olhar pela janela do quarto, em bicos de pés, e observar os meninos de rua a correrem, sujos, por ali abaixo, num desassossego de falta de gente a tomar conta. Deliciava-se a imaginar um mundo maior que o jardim da casa grande das janelas verdes, ali na rua do Alfeirão, livre dos colarinhos brancos e horas certas para o lanche.

- Menino Joaquim despache-se, gritou a velha Matilde, - que já está na hora de ir ao barbeiro. Despache-se que estou aqui à sua espera e não vai querer arreliar a avózinha, pois não?!
Joaquim deu um salto e rodopiou sobre si mesmo. Ia finalmente sair até à barbearia do Mestre Ignácio ali no número 7 da Rua do Imaginário, onde tinha o regalo da quinzena, enquanto esperava pela vez de ir para a cadeira vermelha e ser recebido em grande de tesoura em riste. Era ali, naqueles brevíssimos minutos, que conseguia folhear a Revista Flama, sem ninguém o ver, e sonhar com o mundo enorme das actrizes lindas e vaporosas, que um dia lhe iriam tirar o sono quando batesse pela ultima vez a porta da frente e abalasse para o novo-mundo.

- Mr. Almeida! Mister Almeida, can you please answer this call?! Acordou, ainda de calções de peitilho, estremunhado e percebeu que se tinham passado de repente 47 anos e ali estava ele, a cochilar numa cadeira de realizador com o apelido em letras gordas a marcar-lhe as costas, cheio de pó-de-arroz e de espada na bainha. Pegou no telefone.

- Hello, this is Almeida.
- Menino Joaquim?...É a Matilde. Como vai o menino? Desculpe ligar a esta hora para lhe dar esta notícia... Fez-se silêncio. Um silêncio comprido de ciprestes com cheiro a morte e a desgraça. Passaram-lhe, de sopetão pela cabeça as tias velhas, as rugas, os achaques, os andarilhos e temeu o pior.

- Diz Matilde! Que é que aconteceu desta vez?
- Oh menino Joaquim, nem imagina...uma tristeza enorme, uma ecatombe, o fim-do-mundo cá na terra...
- Desembucha mulher! E a Matilde lá lhe contou da desgraça. Por entre soluços e arranques lá lhe disse que se tinha finado o Artúrico, o homem que desde o principio dos tempos tratava das portas da rua do Imaginário e que agora, sem ele a tomar conta, iam ficar para sempre abertas.

- Um holocausto, menino Joaquim. Sem portas na rua nunca mais se vai poder sonhar acordado aqui na terra...uma catástrofe... E nesse preciso instante, num ápice, num micronésimo de segundo, Joaquim estremeceu por dentro e percebeu por que razão estava ali agora, a 12.000 quilómetros de distância, rodeado de estrelas e com uma estúpida capa de Zorro a cobrir-lhe as pernas. Percebeu que só ali tinha chegado porque tinha sido naquela rua do Imaginário que sorveu as actrizes das revistas, naquelas benditas idas ao barbeiro. E daí, dos sonhos e do papel, as trouxe à vida para lhe tatuarem a pele. Percebeu que foi dali que partiu um dia, num estalar de dedos, para aterrar ali, exatamente ali onde estava agora, rodeado de holofotes e saltos-altos.
Bendito Artúrio que lhe deixou entrar aqueles sonhos todos na barbearia do Mestre Ignácio em plena luz do dia. Que bom que é sonhar acordado. Que bom.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Rua do Hospital do Conde

Na cama 5 da enfermaria 3 jazia Guilherme desnorteado. Não fazia ideia por que o tinham internado, só sabia que se sentia cansado.
Deram-lhe um lugar à janela e ele contava as folhas do outro lado do vidro. Perdia-as e perdia-se sistematicamente, voltando ao principio porque era impossível contar as folhas.
Mas insistia todos, todos, os dias. Memorizava-as para saber donde partir na contagem seguinte. Sempre perdendo a conta e sempre recomeçando.
De tanto olhar já só via uma mancha amarelo encarniçada feita árvore inteira.
Uma mancha bruta de cor que se iluminava em auréola deixando-os turvos a ambos. Guilherme e a árvore sem se saber quem desinformava quem.
Todos os dias, sem falha, Guilherme pedia também que lhe plantassem a árvore defronte de si, no quarto. O pessoal da enfermaria ria-se e ia trazendo pernadas para uma jarra enorme, de plástico, que colocava na degradada mesa perpendicular à janela. Os ramos sucediam-se semana a semana agora à frente do seu olhar. E ele, doente, sem saber se contar as folhas lá fora se gritar “não quero esta ninharia, eu quero a árvore inteira aqui!!”. Guilherme não sabia verbalizar o horror que se lhe entranhava. No jardim do Hospital a árvore desnudava-se. À sua frente as jarras transformavam-se. Estava tonto. Enlouquecia. E ninguém atendia ao que ele tanto perdia. Em desespero chamava com o olhar a sua árvore e sussurrava-lhe, vem para aqui! Mas ela não reagia e até se desnudava sem perceber que aquilo se podia.
Na cama nº 5 era agora Guilherme que se transformava. Sem se ter dado conta a árvore já não existia como no 1ºdia. Era um corpo de ramos vazios. E nus.
E quando viu o que via, vestiu-se, não esperou pela ordem de alta; e saiu. Praguejou rua fora. Praguejou contra o hospital, o pessoal, a árvore, as mutações, os humores.
Praguejou contra os seus pavores e os seus amores. E partiu para o frio e a ventania, embrulhando no casaco a precariedade da liberdade que sentia.
De repente parou. olhou o jardim do Hospital. Procurou a sua janela.
E viu que à frente dela estava a árvore ainda inteira....

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Travessa da Bola

Trazia-te no fundo dos bolsos, bola amarrotada num vestígio de carta que perdera as letras de tanto me agarrar a ela. Não se apagaram, as palavras, antes sairam do papel, escorregando para o bolso e depois pernas abaixo até ao passeio. Senti-as descer, as letras, lentamente até à virola das calças, num percurso penoso de abandono e de partida. Senti-as depois, por baixo dos sapatos a ficarem espalmadas no chão. Perdendo o sentido, a lógica, toda a forma. Senti-te assim, derramada, a sair do papel. Mesmo assim continuava apertar-te despida da tinta, numa tentativa de ficares ali, para sempre em epístola fotográfica. Chapa de artista por revelar a preto-e-branco. Nua. Agarrava-te, nervoso, com os dedos calejados, ásperos, e fazia-te depois festas, com a ponta do polegar, como se o papel amarrotado, bola, que sentia no bolso, fosse a curva, redonda, do teu braço. Ao agarrar-te assim neste vestígio de ti, agarrava-me à memória do principio. Começo feito de papéis que nos escorregavam na ponta da caneta e se enchiam de coisas e paixão. Testamentos e juras. Cartas e promessas. Solfejo de músicas da alma em papel pautado. Trazia-te agora no fundo dos meus bolsos, vazia das palavras e das letras, sem te conseguir deitar fora, como se só por te tocar pudesses um dia viver para além do texto que se foi. Verbo feito carne outra vez.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Travessa de João Barradas

De janela aberta, ela começa a ouvi-lo. Desliga os sons da casa. As luzes, também. E escuta.
Segue a música que identifica com o que em jovem era. Cerra os olhos que usa agora em lanternas de interior. E deixa-se embalar pelo som. Míii, sool…réee..sool...momentos há eras guardados no sótão de si. Acompanha o rasto da luz. Não percebe se arde se alivia. Mas sorri. A viola toca sem nexo embora lhe faça todo o sentido. E dispara em memórias até ao jardim do passado. Maestrina de sóis.

Senta-se na cadeira de sempre, verde, de ferro e chapa de pregos pingados. Pousa os livros que partilha com um amigo tão particular dessa época de jardins. Eram uma delicia aqueles encontros que relembra. Sorri novamente, distraindo-se agora da viola, e vem-lhe à cabeça a frase preferida do João Barradas: “..eu? eu não tenho amigos! eu só tenho relações cordiais de convívio!!..”. Como ele insistia na sua teimosia de se manter diferente. Era tão divertido desconversar com o João. E era nesta desconversa que ela tanto aprendia. O pouco que sabia, fosse de filosofia, de literatura, o pouco que sabia de música tinha aprendido ali, com o Barradas, naquele jardim encantado do passado. E ali deixara ficar tudo o que sabia! Ou não...

De regresso a si, hoje, agora, naquele momento, certificava-se que não.
De janela aberta, escutando os sons da viola que saíam da casa do vizinho da frente. Apenas. Inesperadamente. O retorno de si em notas soltas de viola.
Num sótão onde esquecera tantos acordes mas que estavam lá. Limpos. Intactos. Em recanto arejado e cheio de pautas mágicas como são as pautas cheias. Melodias em tesouro de sons. Havia requiems sim. Mas o som que entrava por ela adentro fazia-se ouvir em allegro grazioso.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Travessa da Viola

Dedilho as cordas desta viola-folha-de-papel-pautado onde pinto as colcheias e as semi-fusas do som da minha alma. Dedilho-as escrevendo coisas sem sentido, numa cadencia de compassos quaternários em ritmo de adágio. Dedilho-me a mim nesta invenção, sonata, com uma mudança de tom maior pontuado de bemois. Saem-me notas das pontas dos dedos e entram engolidas nos ouvidos até ao fundo de mim. Rasgo um som brusco fazendo vibrar cada corda em uníssono. Risco. Amplifico-me. Electrifico-me. Salto para o palco. Cabelos compridos. Peito aberto. Agitação até romper a madrugada. Paro-me. Apago-me. Puxo um som suave da primeira corda. Grave. Intimista. Voz de mulher a seguir o ritmo. Xaile. Fado. Rouquidão de alma. Sobressalto por cima do baixo. Dedilho-me devagar. Traço leve. Nostálgico. Amarrado à sina. Ao passado. E deixo que saiam notas sem sentido numa melodia desafinada. Jobim com violão de papel, a compor para a garota que se foi. Requiem. Elegia. Virar de página. Viola no saco.

sábado, 24 de outubro de 2009

Travessa da Mangalaça

Não havia meio de se ir embora. Continuava ali parado. Estático. Do lado de fora da casa grande, como um cão. Ali estava, sem eira nem beira. Inconsolável. De olhar absorto e ombros decaídos, fazia mais de uma hora. Gritaram-lhe lá de dentro outra vez.
- Vai-te daqui! Faz-te à estrada. Não voltes mais! Olha que chamo a polícia...E ele, num, desamparo de não ter para onde ir, fustigado pela chuva intensa que o ensopava até aos ossos, ali continuava desvalido, numa apatia de meter dó. Sem mexer um dedo. Um cabelo que fosse. Árvore de pé ao deus-dará.
-Que raio se estava a passar? Como era possível ter chegado ali, enxotado como um animal da sua própria casa? Da casa onde vivia, ia fazer no dia 14 de Novembro, 63 anos. Da casa para onde tinha vindo logo a seguir à tropa, deslumbrado com a cidade grande e as saias das criadas e de onde nunca tinha saído, a não ser no verão, com os baús das férias, para os dois meses de martírio no nevoeiro da Praia-das-Maçãs. Como era possível ser escorraçado pela Dona
Maria do Patrocínio depois de anos e anos de serviço diligente. E ver-se ali no risco de se transformar num mangalaça, sem eira nem beira.
- Sim minha senhora. - Claro minha senhora. - É para já, minha senhora. Dias, semanas, meses, anos a fio a desfiar vontades e desejos, sem nunca, nem uma única vez, ter torcido o nariz a mostrar cara de má-vontade. E agora isto...um insignificante deslize e zás. Um chorrilho de disparates. De ingratidões. Uma desconsideração.
- A porta da rua, é a serventia da casa! Vai e não voltes
Roberto! Nunca mais apareças por estas bandas. Esquece-me. Esquece-te. Vai morrer longe, que aqui nem terra te resta para a sepultura.
- Vai-te daqui. Gritava ela tresloucada, ensandecida, a espumar de ódio vitupérios guardados, que ele nunca imaginou serem possíveis por tão pouco. Mas que culpa tinha ele de ter tropeçado, inocente, sem querer, naquela
carta velha e ter descoberto o segredo inenarrável da Dona Maria do Patrocínio... Por baixo daquele poço de virtudes, virgindade, decoro e novenas a Nossa Senhora dos Aflitos, afinal escondia-se Rosette, a famosa escritora das foto-novelas mais picantes de que havia memória. Um mega sucesso que já ia no seu quadragésimo terceiro número e que ainda hoje, mesmo na flacidez dos seus 84 anos, conseguia deixar Roberto desvairado de vontades.
Ai se ele tivesse sabido mais cedo ...

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Travessa do Cego

Então diz você que "nós" temos mau feitio?
A menina ouça lá isto: certa vez ia eu para o trabalho
e, Jesus!, como chovia, nesse dia!
Precisei contudo de passar pelo talho do Gaspar
seria tarde ao regresso e tinha em casa um jantar.
E assim fiz. Entrei e comprei o que quis e não quis.
Agarrei na saca, na outra mão a bengala, pendurado ao colarinho
o guarda chuva que já não tinha como o segurar,
e lá voltei ao caminho.
Chovia sim, mas que havia eu de fazer
estava já atrasado e não podia correr.
Pois olhe que passa por mim uma senhora bondosa
Vê-me de saca numa mão e bengala na outra,o chapéu por abrir
e avisa carinhosa: oh Sr. Ceguinho olhe que está a chover...!!!
Ai que vontade me deu de lhe bater.
Mas aguentei-me, menina, que eu sou de polimento
Só não contive ficar ali parvo sem nada de nada dizer.
E sabe o pouco que me ouviu ela?
«Ai não me diga, senhora, estou eu aqui encharcado,
molhadinho até aos pés carregado de sacolas e apressado
pro trabalho, que me distraí com o cuidado de tactear o
caminho, tão concentrado estava em não esbarrar com ninguém,
que - imagine! - é que nem vi que havia chuva a cair! mas que distracção a minha!
Mas se tiver por aí outra mão para me emprestar
ficava-lhe grato senhora, é que só trouxe
estas duas que Deus me deu ao nascer.
Se a senhora tiver três uma eu ia agradecer.»
A senhora ficou furiosa e não gostou da resposta
partiu dali danosa a falar com as costas pra mim:
são muito ingratos estes cegos, não vêem que só quero ajudar
têm mesmo mau feitio nem se lhes pode falar!

Pois sim, menina, temos mesmo mau feitio, ora não vê?!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Travessa das Peras

Sezinando tu que preferes?
Sezinando refastelava-se melhor no sofá
estendia os pés languidamente sobre a mesa e respondia
Amor, é-me igual, escolhe aquilo que quiseres.
Pois sim, Sezi, mas sozinha não, quero a tua opinião.
Ir à Espanha ou ir à França é-me absolutamente igual ,
o que eu quero é estar contigo, pode ser em Portugal.
Constança dava ruidosamente mais uma dentada na pera,
já era a terceira; a ferroada acalmava-lhe os nervos,
nem tão pouco atendia áquilo que fazia.
Mas Sezinando vamos ambos passear, escolhe comigo o lugar.
Eu quero é estar contigo, paixão, o mais não me importa,
basta estarmos os dois, eu já to disse amor,
nada tenho a opor.
Opores-te a quê, Sezinando???
Crre, crre, Constança continuava defendendo-se na pêra.
Aquilo era fruto que nem tinha sabor mas tinha de roer aquele rancor
O que não foi suficiente estava-se já a prever
e até de boca cheia acabou por explodir:
Pois eu estou em crer que nem mereces ter mulher
Morgadinho de Roiz? quero eu lá mesmo saber
Continua aí sentado que eu parto e é já
Vou pra bem longe daqui morarei noutro lugar
Que este está cheio de nada, criatura sem vontades
Não aguento mais viver com quem nem sabe querer.
Constança agarra na cesta, corada e cheia de fúria
atira-lhe as peras à cara sai deixa a porta bater
E ainda lhe grita de fora: fica bem aí deitado
Leva as peras pró sofá e come-as todas Sr.Morgado!

Travessa do Tavolante

Há atrasado, como se diz na Invicta, tavolante era o mesmo que tavolageiro ou tabulageiro. Isto é, dono de casa de jogo ou, aquele que toma parte em jogos de azar.

Dentro em breve, as eleições para a Câmara Municipal de Lisboa serão a oportunidade para a explicação do resultado do PSD nas recentes legislativas. Se verá também, quantos tavolantes existem e quem são.

Nas eleições para o Parlamento, a coligação de partidos que apoia o Dr. Santana Lopes – candidato repetente à edilidade da capital – obteve mais votos que o PS. Parece portanto relativamente fácil a sua eleição, mesmo que o candidato nada acrescente à soma das parcelas.

Com as máquinas partidárias a trabalharem em conjunto, o que, por si só, constitui uma verdadeira vantagem e os líderes disponíveis para apoiar o candidato e galvanizar os eleitores dos respectivos partidos, convocando a votação na lista conjunta e dando a importância que a maior autarquia realmente tem e principalmente, simboliza.

Se, como se vê, a eleição parece segura, o Dr. Lopes anda resguardado há imenso tempo, poupando a sua imagem, o que lhe aumenta as possibilidades. Só se deixou ver na campanha nacional, uma vez. Não emite opiniões diariamente como era seu timbre em tempos passados. Tudo isto lhe facilita a eleição. Mas, e… se não for eleito?!

C’um diabo! O Dr. Lopes já foi tudo na política. Desde secretário de Estado a Primeiro-Ministro. Presidente de duas Câmaras Municipais. Conhecem-se os resultados. Não seria prudente absterem-se de o empurrar para mais cargos públicos? Será que fazem apostas sobre o homem?

Se a improbabilidade de não ser eleito acontecer, a que se ficará a dever? Aí, a Dra. Manuela Ferreira Leite perceberá, bem como os seus conselheiros, que os eleitores do PSD não entendem – nem entenderam – como se pode disputar uma liderança em Congresso e posteriormente, nomear o rival desse mesmo Congresso para candidato à principal Câmara do país. E portanto, provavelmente, ficaram sentidos! Nem se percebe como pode ter andado o seu principal conselheiro a predicar semanalmente contra o Dr. Lopes e ter dado a sua bênção a tão controversa decisão.

Uma pena! Porém, terá a vantagem de ficar explicado um resultado. Mas sobretudo, quem são os tavolantes! Os que participam na jogatina; os outros, os donos da távola, isto é, o dono da banca, teremos de esperar. Por enquanto, só se conhecem alguns croupiers.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Travessa da Tamara


Escorregavam as gotas das folhas e caiam-lhe sobre os pés.
Ela passeava distraída e devagar de olhos postos no chão.
Uma vez por outra levantava a cabeça
que mantinha por minutos paralela ao tecto do céu
queria que os vestígios da chuva lhe chegassem também ao rosto.
Abria a boca, recebia os pingos e sorria estonteada.
Ia pisando as pocinhas da calçada como se o incómodo da água fosse
uma benção intencional.
Apreciava aquele desconforto à maneira de consolo.
Desceu a Tv. da Tamara e o cinzento do dia avermelhou-se.
Mª do Patrocínio inventava cor fosse onde fosse
mas a ideia do fruto, desta vez, avivou-lhe a cor das dores.
Costumava fazer este ritual sempre que padecia.
E como por ali muitas vezes chovia era um luxo que podia.
Não se sabe precisar quanto tempo andava assim
Nem tão pouco ela própria dava conta por onde ia.
Tinha de vaguear sem pensar para conseguir reflectir.
Mª do Patrocínio encontrava os caminhos da vida assim
Sem gastar um tostão, sem precisar de mais nada
se não de encontrar uma rua pingada.
No bom tempo? percorria, pé descalço, os caminhos do riacho.
Naquele dia, porém, caía já a noite e ela não se resolvia
“que faço eu Maria” perguntava mil vezes para si.
Acendiam-se as luzes da cidade mas ela não podia regressar
precisava decidir que fazer com o pesar que carregava.
Esgueirou-se para uma igreja onde jazia um corpo.
Só uma pessoa lá estava e ela sentou-se também.
Confortou-se naquela paz onde ninguém queria entrar
respirou o cheiro intenso das flores a preto e branco
deixou-se ficar, e ficar...e ali quieta viu à lupa a solução.
Voltaram-lhe as cores das flores. Rejubilou. Decidiu que partiria.
Acreditou que ia para o Céu saiu da Igreja a correr
e foi excitada ruas fora, tinha pressa, ia pra casa morrer!

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Becco das Ramalhas

Andava às voltas todas as manhãs com as suas questões existenciais Assim que chegava e punha o pé no apeadeiro, não tinha como lhes escapar. As carruagens, o cheiro do óleo, os cigarros dos outros fumados à pressa com um pé no estribo, tudo aquilo lhe acendia uma luz imaginada no fundo-do-túnel. Via os comboios-com-destino-marcado. Letreiros luminosos a antecipar a hora da partida. Monitores a despejarem o tempo no destino. A temperatura. E questionava-se do porquê da ansiedade que sentia neste movimento repetido de horários e sincronias? Esta expectativa de chefe-de-estação a fazer soar o apito do ir para repetir a volta, dia após dia. A seguir saía e, logo à porta da estação, repetia o ritual de olhar para as montras das agências-de-viagem e ver Tenerife. Ver Sal. Ver Açores e todos esses mundos sem comboio para ir. Via-os num desespero da impossibilidade de não poder partir, ou seria como a justificação para não querer? Consolava-o saber esse mundo a duas dimensões de mar-azul-e-ondas e tê-lo coroado de preço promocional e dava-lhe prazer deixá-lo ficar ali estar colado à vitrina.
Era assim, neste moto-contínuo de pensamentos de repetição da vida, embalados pela cadência das rodas a estalarem ainda nos intervalos dos carris, que subia até ao Becco das Ramalhas. Era sempre o primeiro a chegar. Abria o ferrolho. Tirava o casaco. Vestia a bata-azul e começava, com uma paciência de Job a preparar a grande máquina do offset, para daqui a nada voltar a imprimir, uma vez mais, a encomenda diária de trinta e quatro paletes de bilhetes para a CP, que a Marieta, ao final do dia mandava, religiosamente, para Lisboa. Estava cada vez mais cansado. Saturado. Andava há anos a pensar como fazer. 56 para ser exacto. Um destes dias acabavam-se todas as dúvidas, as questões e repetições, o rodopio da ida-e-volta e a impressora a amassar papel. A solução estava ali á mão de semear. Acabada de fazer. A estalar. Sem que ninguém reparasse. Abarbatava-se a uma palete inteira de bilhetes e abalava, sem dar cavaco a ninguém, e ia dar uma volta ao mundo e tirar as dúvidas se os sítios todos que decoravam com hora de chegada os monitores da estação, era mesmo reais. Ninguém ia notar. Talvez a Marieta... pensando melhor, pelo sim pelo não. tirava mas era duas paletes e nunca mais ninguém lhes punha a vista em cima...

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Rua dos Aferrolhados




Cárcere não existe e ninguém se lembra.



Cáceres é distante. A terra do presunto Joselito – o mais “exquisito” de Espanha – antes ficasse próxima e teríamos o manjar dos Deuses – no dizer de Ferran Adriá – dentro de portas. Nem teria importância se ficasse fora das portas, se à beira do nó da Transalentejana.



Os aferrolhados, pela sua condição, não precisam de um cárcere. E Cáceres não é Cárceres e assim sendo, a que propósito vem para aqui o presunto de Guijuelo? O que viria a propósito seria o de Jabugo. Bem mais próximo de Évora – do outro lado dos barrancos de Barrancos, onde os portugueses são mais espanhóis.



Mas os aferrolhados nem sequer precisam de cárcere. Ou seja, a associação a Cáceres é meramente fonética mas vale, pelo menos, para fazer crescer a curiosidade e o desejo por um grande produto.



Os aferrolhados podem estar ao ar livre que é grande castigo à hora da calma. Mas, calma! Porque ninguém disse que os aferrolhados o eram de facto, com grilhetas e bolas de ferro presas aos pés.



Tratar-se-ia antes, de gente condenada ao ostracismo. Impedida de prosseguir a sua verdadeira vocação. Suspeita tratarem-se dos primeiros gastrosexuais surgidos na Península Ibérica. Assim, a bem dizer, avant la lettre. Justamente em Évora, onde o Arcebispado não os teria visto com bons olhos, em face dos costumes e da moral. Porque o costume, era a hierarquia ter uma palavra sobre as Barrigas de Freira e outros doces conventuais, além das mais variadas açordas e ensopados.



Quem nunca se pronunciou foram os frades, dedicados aos fogões com enorme mestria mas, votados ao silêncio. Aliás, que era como se devia votar, sempre!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Rua Carta Velha


A Carta Velha tinha um ginete daqueles.
Orgulhosa e teimosa, segura de si
Olhava-se ao espelho e não se entendia
mas achava-se fantástica mesmo assim.
Descolorada pálida ou rabiscada tanto lhe fazia
mirava vaidosa as palavras trocadas diante de si.
Roberto que arrumava a memória queria ver-se livre dela
Mas carta velha não se deixa vergar.
A mim ninguém me desfaz! Escreveste, fiquei escrita.
Não vais anular esta letra bonita.
Roberto, exasperava, agarrava-a com força,
pressionava firmemente os indicadores contra os polegares
e num movimento rápido zás
Mas o diacho da carta velha saltava, gargalhava estrebuchava
pois deixar-se rasgar era só o que faltava.
Roberto tentou queimá-la mas ela não ardia tentou amarrotá-la, afogá-la
mas a carta resistia, resistia, respirava vida por cada palavra que tinha.
Ela estava decidida, carta escrita não se desescreve.
Mas este Roberto não era fantoche e decisão sua não se contraria.
Pôs a carta em cima da mesa e que fez?
escrevinhou por cima dela! ”
"e agora, és nova ou velha?”
A carta velha não gostou.
Engoliu as letras novas comeu-as todas inchou.
Ficou um balão e voou.
Mas diz-se por aí que A Carta Velha voltou.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Travessa das Nunes


Eram danadas. Por onde quer que passassem deixavam atrás de si um rasto de perfume e de vontade no nariz dos homens. Mafalda era a mais velha. Dava ares de amazona. Cabelos longos, sedosos, onde o sol se reflectia de tal maneira, que quem quer que olhasse cegava de vontades. Mafalda era alta. Com as curvas todas no sítio por baixo da justeza permanente das calças apertadas`ao cano das botas. Era um portentado da natureza. Dois vulcões espartilhados quase a entraem em erupção a rebentar os botões da camisa branca, imaculada, que lhe ornamentava o busto. Mafalda tinha a tez bronzeada. Olhos rasgados, longos como amêndoas amargas, inebriantes e doces. O nariz fino prolongava as linhas magras da cintura de vespa. Mafalda era boazona. Ninguém lhe ficava indiferente. Mafalda era a mais velha. A mais vistosa. Já Beatriz, era roliça. Cara redonda e olhos azuis que lhe enchiam o rosto por cima das faces coradas de calor e de desejos. Tinha o rabo empinado e cheio em duas grande bossas que lhe queriam sair das mini-saias exíguas, com que sempre se aperaltava. Beatriz era uma meia-leca. Talvez um metro e meio de traquinice a compensar, com despudor, a sombra que a irmã lhe fazia. Usava sempre o mesmo perfume com forte cheiro a baunilha, cravo-da-índia e hortelã com uns farripos de dálias do outono.. Era assim um agri-doce que despertava uma vontade voraz nos transeuntes. Nunca tinha conseguido fazer um outro assim. Inigualável e irrepetível. Beatriz sabia que só com cheiro é que chamava a atenção. Era tipo engodo da pesca, onde o aniz misturado com farelo fazia as delicias das bogas que picavam de boca escancarada os anzóis dos pescadores. Beatriz tinha visto o seu pai repetidas vezes na Barragem do Divor a usar a técnica. Infalível e fatal. Por isso, desde nova, que aprimorara a arte dos odores. Preferia os cheiros orientais misturados com as ervas aromáticas que comprava na praça nos sábados de manhã. Deliciava-se noite dentro nas alquimias misturando cravinho com patchuli, incenso esmagado com coentros, canela com folhas de louro. Juntava tudo muito bem. Esmagava. Moía. Filtrava e no final preenchia com essências florais a tornar os odores bem femininos. Irrepreensíveis. Completos e fatais.
Mafalda pegava com admiração nas novidades que Beatriz acabava de fazer e colocava uma gota em cada pulso primeiro. Depois um toque suave atrás de cada orelha e o ar enchia-se dos mais inacreditáveis cheiros e de volúpia. Beatriz abria mais um botão da camisa justa e colocava bem no meio dos seios duas gotas de perfume. Do seu perfume de sempre. Deixava que escorressem levemente pela barriga inundando os refegos num banho de vontades. Depois saiam para passear. Vagarosamente. Meneando-se. Pavoneando-se. Deixando que as atenções dos homens se prendessem irresistivelmente naquela mistura inebriante de continentes e vulcões. Eram danadas as Nunes... Bastavam 5 minutos e já tinham um marialva colado à cauda. A babar. Transtornado. Apardalado. Pronto para a festa. Metiam conversa e e levavam-no a reboque, sem esforço, duas ruas à frente e entravam os três no 31. Subiam dois lanços de escada e faziam o que tinham a fazer ao pobre coitado. Azar do bicho, a coisa passava-se na Rua do Capado. Ui. Eram danadas as Nunes...

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Travessa do Mal-Barbado

A cidade vestia-se das cores do Outono. Apagadas. As montras anunciavam já o frio eminente por entre os últimos biquínis em saldo. Adivinhava-se a brevidade dos dias, o breu a carregar as ruas com as goteiras a despejarem baldes de céu na calçada escura. Algumas árvores começavam a despir os ramos fustigados pelos ventos norte, do fim da tarde. Ainda restava tempo para os últimos passeios vagarosos, depois de jantar, com direito a café em manga-curta. Ainda havia, mas era já breve a espera até à hora dos casacos.

Enquanto, pausadamente, subia a Travessa das Invernas em direcção a casa, talvez por causa de uma grande semelhança desta com o nome da estação que se avizinhava, ou só porque dentro de si há muito se vestia de tons cinzentos, como se uma nuvem o perseguisse para todo o lado, sempre que por ali passava cirandavam-lhe pela cabeça pensamentos, sombrios, que cheiravam a frio e sabiam a noite. O sino da Sé ouviu-se ali ao lado, nas suas vagarososas batidas. Onze. Onze sincopadas e sentidas, uma por uma na ponta dos seus sapatos, na calçada escura. Era ele, elas e os seus pensamentos, dentro da sua cabeça a latejarem de um lado para o outro como no torreão o sino a trazerem sonoramente uma amargura inexplicável. Que belo trio. Pensou, deixando escapar um sorriso amarelo, de soslaio, para si próprio. Ele e a música de bronze, monocórdica a acompanhar com solfejo uma marcha de pensamentos fúnebres . Trio-harmonia de uma só nota numa procissão, como tantas outras, com o andor de si aos ombros numa inconsequência de um percurso fechado de adro-a-adro. Sentia-se velho. Agastado. Só. Sincopado com a estação que vinha aí. Apagado do que era, sem cor que se notasse.

Olhou-se, ao passar, num reflexo de janela e apeteceu-lhe sacudir a cabeça e deixar que lhe escorregassem os pensamentos pelas orelhas, expostas de pouco cabelo. E o deixassem em paz, devolvendo-lhe as suas cores de estio. Apeteceu-lhe que caíssem no chão e fossem levados pelas bátegas de água anunciadas. E que fossem andando, andando, até chegarem a uma foz qualquer de rio e se enchessem de sal no mar. Deu por si a agitar furiosamente a cabeça. Uma. Duas. Onze vezes com as badaladas. Ficou zonzo de tanto se abanar e não teve outro remédio senão encostar-se à parede do número 32. Tinham saído, finalmente, os pensamentos. Sentia-se tonto e vazio e a pairar.

Manteve-se parado. Estático. A recuperar a compostura, cofiando com determinação a barba de quatro dias, imagem de marca que lhe era o epíteto. Subitamente, começou-lhe a subir pelo nariz um cheiro intenso vindo dos confins da sua memória. Como por magia fez-se luz em seu redor. Um clique e zás. Descobriu o que lhe faltava neste anúncio de outono-inverno para vir. Finalmente entendeu a razão de tanta nostalgia. O porquê da secura dos passos arrastados. Fez-se luz. Descobriu que lhe faltava sal nos pensamentos. Maresia. Azul a juntar-se ao céu. Ondas. Espuma branca. Gaivotas em vez dos pombos a cagar o fontanário da Travessa Torta. Toda a vida foi marinheiro. Um lobo-do-mar sem porto-de-abrigo. Não podia estar ali. Não podia estar ancorado naquela doca seca. Tinha falta de mar. Faltava-lhe o sal. Era a hora de partir.

Deram com ele morto, aos primeiros raios de sol, de olhos bem esbugalhados com um sorriso enigmático a espreitar a barba por fazer, sentado à porta do 32. Estava hirto, seráfico, sem vestígios de dor nem sofrimento. Estranhamente, à sua volta um forte odor a algas, iodo e rochas enchia todo o ar. E quem o olhasse com atenção, ainda via, lá ao longe, no fundo das suas pupilas dilatadas, a primavera e o mar imenso que o levou vezes sem conta à terra prometida.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Travessa das Invernas


Felisbela era invisível,
Não se via não se percebia, era totalmente anónima
Tristão era o seu pai, sua mãe era a tristeza.
E a rapariga ainda moça de nada se apercebia
Só lá para adulta sentiu uma claustrofobia
seguida da ausência da luz da alegria.
E à primeira partiu, emigrou.
Correu mundo, partiu só.
Ninguém deu por nada quando regressou.
Mas Felisbela mudou.
Entre os colegas do hotel onde mais trabalhou
Pela ingenuidade que tinha ou fosse o que fosse ou não fosse,
foi de todos a que mais corações cativou.
Felisbela era diferente e de todo transparente.
Foi colhendo amizades, coleccionou simpatias,
aprendeu a rir a conversar a perceber que afinal
era uma mulher que se via.
Mas a mãe morreu, o pai Tristão ficou só
e por isso Felisbela voltou.
Perdeu o Verão, perdeu a cor, mas continuou teimando,
no passeio dos anos, que mais vale ser transparente
invisível até do que ser altivo ou andar em bicos de pé.
Felisbela era o que era sem pensar no que se é.
Com esta percepção só encontrou recompensas.
Ao passear pela vida reuniu uma famosa colecção
de criaturas iguais às criaturas iguais
e criou a fundação das anónimas eternas.
Felisbela e as sócias da fundação,
mexeram-se determinadas deitaram mãos à obra
e instalaram-se com entusiasmo já no inverno dos seus dias
na mais luminosa travessa daquela cidade
que passou a chamar-se a Travessa das Invernas.

domingo, 30 de agosto de 2009

Rua Amas do Cardeal


Quem eram essas senhoras que o cardeal tinha para si
Criadas, empregadas dedicadas que todos louvavam
Eram aias bem amadas que restavam por ali
Faziam doces e manjares que os comensais adoravam
Visitas que não iam pelo cardeal
iam mesmo para as delicias e faziam as delicias às amas do cardeal
Eram amas afilhadas de padrinhos gulosos
Eram senhoras delicadas de sabores gostosos
Os doces, os cuidados, os petiscos, o mais que interessa?
Essas senhoras embora senhoras de bem tinham almas humanas
Que tanto queriam ao cardeal para dele cuidar,
como o próprio as procurava para as suas penas curar
Seria por isso que antes do cardeal vinha o cura?
Tontaria ou disparate tudo se pode escrever sobre uma rua qualquer
Mas esta de que vos falo é uma rua mulher
Se por alguma razão parece a rua do cardeal
É por vicio de achar que é o homem o principal
Seja qual for a hierarquia está visto que eram as amas as donas da via
Ali se cozinhavam com requinte e saber os melhores toucinhos do céu e
outras celestiais doçarias feitas com muitas e muitas gemas
já que as claras eram necessárias para engomar os colarinhos
dos comensais requintados destes lugares honrosos
e, claro, dos cardeais e doutros que tais
que todos sabemos não fossem as amas não iriam lá mais.