Queria tanto conseguir falar-te dos equívocos de uma vida inteira a aturar-me a mim num papel que não deveria ter sido o meu. Dizer-te que os filhos que pari era suposto serem os teus. Nas noites de idas às urgências era a ti que eu imaginava a levar-nos à porta e a esperar do lado de fora atafulhado em SGs. E nos programas de idas ao circo era a tua língua que me apetecia
Desligo a chamada irritada e revejo novamente estas cenas do meu teatro-vida, que sobe ao palco num recorde de exibições inigualável. Sem ponto. Sempre com uma branca na parte decisiva do enredo. Suspiro na esperança da vez em que o pano caia e, depois dos aplausos breves, te encontre-de-flores-na-mão na desmaquiagem do camarim.
Pouso o telefone. Deambulo na infantilidade de achar que, por artes-mágicas, me irás bater agora à porta, de malas na mão, e ocupar o teu lugar na cama e no elenco do cartaz. Pressinto a tua solidão. Confirmo a minha. Agarro novamente o telefone decidida a voltar à cena, mas não consigo que me saiam as primeiras palavras pelos dedos. Perco as forças e fico-me, como sempre, na inconsequência do pensar.