terça-feira, 17 de novembro de 2009

Rua do Cenáculo

Mordo o anzol sem me aperceber que aquela palavra tão redonda e cheia só podia ser um isco. Mordo sôfrego, abocanhando cada uma das letras sem as saborear de tanta pressa. Dói-me agora o céu-da-boca e sinto que na ferida do anzol se escava e abre por dentro um canal directo até ao hipotálamo. Fui tramado pela fome. Começo agora a sentir a cabeça a andar à roda. E sinto um remoinho de pensamentos a cair por esse buraco-ralo até à minha boca. Saem-me aos soluços, da cabeça aos lábios. Escorrem depois e ganham vida própria assim que se sentem soltos. Continuam em catadupa a brotar de dentro, raspam o cortex e passam a ranger-me os dentes. Abano-me. Tento fugir. Canso-me. Desisto. E acordo estremunhado. Deixo que me saiam os últimos, enquanto abro os olhos, em golfadas, até que a exaustão de idéias se espalhe lago-largo desconexo aos pés da cama. Já saíram quase todos e posso agora, enfim, serenar. Soergo-me com cautela. Sento-me agora à beirinha da cama para poder observar lá em baixo, esse mar de pensamentos enrolados nos pés da cómoda, a subirem pela estante dos livros, vivos, a reluzir com os primeiros raios de sol que entram no quarto pelas frestas do estore. Não tarda nada vão aquecer. Vão aquecer a ponto de se evaporarem no ar e subirem ténues, em fumarolas silenciosas para todo o lado e voltarem a cair leves e a entrar noutras cabeças de outras cabeças. Esfrego os olhos e de consciência desperta percebo agora que têm vida própria e uma vontade irredutível de existir para além de quem os pensa. Senhores de si, sem pai nem mestre. Património universal, pertença de ninguém. Entendo finalmente, sentindo ainda o adocicado da palavra-isco a iludir-me as papilas, que existe para sempre um infinito eco de pensar que nos entra pelos poros e sai pela boca, eterno retorno sem principio nem fim. Fez-se Luz. Vejo-os começar a desaparecer na claridade do dia quente, de partida anunciada para cumprirem o seu destino universal. Livres. Perguntas-me qual a palavra irresistível, redonda, imensa, cheia de tudo que estava presa no anzol? - Respondo-te que foi o Conhecimento que mordi. Sabia a maçã.

2 comentários:

  1. Gosto muito das palavras que deixas fluir ao correr da pena, sobretudo quando sabem a maçã!!!
    Beijos
    ME

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  2. Continuo a gostar...e a reconhecer a tua escrita, é impressionante.
    R

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