quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Rua da Misericórdia

O que eu te queria mesmo ter dito, ainda há pouco quando falámos ao telefone, é que me fazes uma falta do caraças. Sempre a fizeste. Mas não. Enrolei-me outra vez em falinhas mansas, diz-que-disses, banalidades, histórias-de-outros, lugares-seguros, e fugi uma vez mais ao óbvio. É sempre assim. É tão visceral esta vontade, que de tão grande me emudece sempre que a tento pôr cá para fora.

Quantas ocasiões tivemos em que não me atrevi. Olhos nos olhos até me faltar a coragem e a voz. De sapatos na mão depois de dançarmos os quatro até cair, com a manhã a despontar na planície. Na comoção de um velório à porta da igreja de São Mamede, a chorar-te nos ombros as saudades partilhadas. Enroscada no sofá dos jantares de amigos com o frio a fazer-nos sentir de perto o respirar, enquanto os outros se aqueciam de pé nos cubos de gelo dos wiskyes com água-lisa. E também noutras estações. Na cumplicidade das férias a casais com as toalhas coladas lado-a-lado a divagarmos nos livros ainda a meio. Noutras latitudes com lareiras das semanas de neve, quando todos já tinham ido para a cama e tu ficavas para a última brasa no pretexto de não me deixares sozinha com o Baileys. E na urbanidade de Lisboa, a seguir ao filme certo que estreávamos, porque estavamos condenados a ser os únicos que tinham paciência para coisas faladas em francês. E também doméstica, depois do teu Sporting vencedor, em que aparecias lá em casa para celebrar e te deixavas ficar para além do Francisco e das suas horas certas de deitar. Muda no beijo da despedida, em que deixava escorregar a boca para te tocar o canto húmido dos lábios, sôfrega que rebentasses tu com o silêncio. E sempre, sempre, quando me agarro, como hoje, à tua voz lá longe e espero o momento certo de tossir este sufoco que me arranha a garganta. Sinto que me esgotei nas oportunidades de tantas maneiras para encontrar a ocasião certa. A pirueta, o salto-mortal ou simplesmente o abraço, para te vomitar esta vontade incontrolável que me aperta-espartilho o peito, desde que te conheci gaiata no sétimo ano dos Salesianos. Nunca tentei e falhei sempre.

Queria tanto conseguir falar-te dos equívocos de uma vida inteira a aturar-me a mim num papel que não deveria ter sido o meu. Dizer-te que os filhos que pari era suposto serem os teus. Nas noites de idas às urgências era a ti que eu imaginava a levar-nos à porta e a esperar do lado de fora atafulhado em SGs. E nos programas de idas ao circo era a tua língua que me apetecia
a lamber-me os dedos de algodão-doce-besuntado. Nos brindes das passagens de ano as tuas passas que eu queria na boca. Como eu gostava de te conseguir falar destes papéis trocados, em que sempre te suspirei protagonista e não este quase-figurante sem direito a aparecer no genérico. Dizer-te que no casamento da Mafalda eras tu que a devias ter levado ao altar engalanado. Na morte do meu pai era a ti que cabia limpar-me as lágrimas de todos os rancores e coisas por confessar. Queria-te relatar minuto a minuto uma vida amargurada porque era suposto ser o teu nome a aparecer nos envelopes, que ainda vêm parar por engano ao 5º Direito, passados tantos anos. Gostava tanto de te conseguir falar de tudo isto aqui sentada à mesa da cozinha, enquanto espero que a chaleira apite uma vez mais. Nunca consegui. Falhei sempre.

Desligo a chamada irritada e revejo novamente estas cenas do meu teatro-vida, que sobe ao palco num recorde de exibições inigualável. Sem ponto. Sempre com uma branca na parte decisiva do enredo. Suspiro na esperança da vez em que o pano caia e, depois dos aplausos breves, te encontre-de-flores-na-mão na desmaquiagem do camarim.

Pouso o telefone. Deambulo na infantilidade de achar que, por artes-mágicas, me irás bater agora à porta, de malas na mão, e ocupar o teu lugar na cama e no elenco do cartaz. Pressinto a tua solidão. Confirmo a minha. Agarro novamente o telefone decidida a voltar à cena, mas não consigo que me saiam as primeiras palavras pelos dedos. Perco as forças e fico-me, como sempre, na inconsequência do pensar.

Tem misericórdia de mim. Tem piedade. Liberta-me desta agonia. Põe-me tu as palavras e os teus beijos na boca e rasga-me o pano para que a peça possa finalmente começar.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Rua das Fontes

Pinto distraída e as horas passam em zonas de tinta que desconfio não ter sido eu a usá-las. Manchas de cor aparecem na tela como se soubessem sozinhas onde se posicionar. Instalam-se decididas, sabendo por magia o seu lugar destino. Numa coreografia combinada em dias reais. Não recordo os castanhos, os cinzas ou os vermelhos mas tenho ideia de um negro, nos contornos poucos, jogando às escondidas com a luz no meu pulso.
Sonho-te em pinceladas enquanto nem uso pincéis. É na base da espátula que estás, ora grande ora em apontamentos imediatos para que te identifique em devaneio limpo. Tudo automático como se a minha mão não estivesse presente. Até o cansaço me esquece e o trabalho faz-se pássaro cujos movimentos já me entretive inúmeras vezes a seguir. Nem me ocorre que hoje sou pardal e tu água fresca em pingos escorridos de cor. Mas acontece. E debico as tintas sobre os sonhos em fonte de ti.

Distraio o olhar janela fora e vejo o meu companheiro de tantos anos, abeto em fundo de rio, sempre de braços abertos. E com ele, os meus voos, libertos; transportando nas asas a vida, à tela. Por um momento regresso e à minha frente encontro imagens belas em tricolor. Como tinha concebido em dia de chão.
Molho o bico nas águas da fonte que colho em voo rasante. Retorno as vezes necessárias até alcançar a frescura a estampar-se nos óleos. Acabo contigo estas obras pintura e fico-te grata pelo que consigo.

Preparo nova série, dias mais tarde, com o mesmo tema desta vez em coloridos mar. A mesma coisa. Mágico. Afinal não foi fantasia. Mantenho-me pássaro e sobrevoo-te nas formas livres dos meus movimentos. Vão directas em escorrega do coração para as manchas azuis e verdes que a água da fonte ilumina intensamente. Reconheço-te no resultado em obras baptizadas e repintadas vezes sem fim, onde a noção do empenhamento se desviou para ti. Faço agora só contornos. Experimento desta vez os vazios. Que se enchem com o olhar daqueles que vestem os sentidos. É o peito em tambor. As palpitações em pandeireta. E a tela a sorrir-me na alma. Pois também desta vez foi contigo que a consegui.

Rua da Zanguella


Tinha aquele hábito de entrar de rompante, porta a dentro no café como se o espaço fosse seu e as pessoas peças sem energia aparente mas que dia sim dia não transmutavam. Naquela vez, ia mais decidida do que nunca; elevou o punho à laia de microfone e disparou: “é tudo matemática, é tudo aritmética, física, metafísica, astrologia ou até poesia para quem o quiser, desde que se conheça com sinceridade a filosofia”. Micaela lia os rostos, indiferente, pose digna, teatralizava: “formas e fórmulas, molduras, padrões, etiquetas, levaram anos a construir, deram trabalho a conceber, para que qualquer de nós resolva estragar a maquilhagem da realidade a seu bel prazer”.
Elevou-se, trepou para uma cadeira e gritou: “ouçam o que vos digo: quem julga que basta decidir ser livre, desengane-se, pois agonizará para sempre, e dolorosamente”. Os clientes do café olhavam estupefactos, não queriam assistir a desconstrução alguma nem tão pouco ouvir aquela maluca. Tentaram distrair a atenção, retomaram as conversas, as leituras, os cafés, as alegrias.
Micaela era vistosa. Vestia saia justa preta, botas altas da mesma cor e uma garrida camisolinha listrada. Das orelhas pendiam uns brincos histéricos em latão dourado e as pestanas eram semi-círculos de gata a abrilhantar os olhos miúdos. Mas, se dava prazer olhá-la, melhor ainda era ignorá-la. Só que ela continuava: ”eu, colecciono rótulos, amo estereótipos, escolho estilos e enquadro-me por direito à normalização”. E dito isto, sem dar tempo às pessoas de ripostar, pôs-se a circular de cliente em cliente alterando o mais imediato. Retirou os livros ao rapaz do canto e pousou-os na mesa da senhora velhota, despiu a boina da adolescente e vestiu-a ao homem metro encostado ao balcão, tirou o xaile freak à morena e colocou-o aos ombros da loura executiva…saltitava, chacoteava e ria-se nesta dança de improviso veloz que interrompeu bruscamente. Suspirou cansada como em qualquer actuação e imobilizou-se. Estática. Séria. Até que por fim fez uma vénia alongada. Os clientes do café da zanguella esperavam. Deixaram escoar um minuto comprido. Todos se entreolhavam como que aguardando o sinal dum maestro imaginário e de súbito num coro sincronizado soltaram imprevistas gargalhadas que só pararam para substituir por palmas e pateadas.

Micaela lança então um sorriso rasgado e caminha para a saída acrescentando em tom de apoteose “se tivessem juízo saíam todos; porque tudo o que vêem é mentira, o que ouvem, o que lêem, é mentira, até este café não existe”.
E partiu sabendo perfeitamente que nem sequer tinha ali entrado.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Travesssa de Roma


Rafael pensava sempre naquele homem-equação antes de se aventurar na tela. Ocorria-lhe aquela imagem quando começava a afiar as ideias, a faca e lascas, na ponta do lápis de grafite. À sua frente o cavalete já preparado com o vazio insuportável em formato setenta por cem. Sobre a mesa uma infinitude de pincéis, esponjas, tubos e uma paleta com os restos do passado, em histórias secas que não chegaram a ser. Concentrava-se no emaranhado de linhas e conceitos, que haviam de vir, enquanto iniciava um diálogo surdo com aquele homem que lhe ocupava agora a cabeça e as mãos. Era uma obsessão recorrente. Um vício, mesmo. Sempre que se preparava para atacar a tela em branco não resistia e puxava à sua memória o desenho primordial, ícone da perfeição - o Homem de Vitruvio. Primeiro esperava que ganhasse definição e contornos até ficar circunscrito e arrumado na exactidão do seu círculo-quadrado. Via-o tomar as proporções certas, magistrais, de braços e pernas esticados numa tangente universal. Divertia-se depois a fazer com que aquela figura começasse a andar à volta sobre si com as veias do pescoço a dilatar. No início o movimento era equilibrado, fazendo daquela roda-viva o esplendor possível da beleza. Fechava os olhos e insistia até que a imagem começasse a girar com velocidade. Mais velocidade ainda, até que os cabelos-longos-caracóis se abrissem em juba e as suas 4 pernas ganhassem vida própria e transformassem, num ápice, aquele homem-músculo num animal de circo. Amedrontava-o esse instante-fera antes da cena passar ao movimento perpétuo que a seguir o hipnotizava. Vinha-lhe então o enjoo e sabia que a partir desse instante passava ele mesmo a ser todo esse rodopio imparável. Rafael precipitava-se na vertigem da fusão e arrepiava-se, com o palpitar na pele, das proporções exactas da matemática dos corpos. Sentia-se fórmula. Possibilidade infinita. Corpo transcendente. Estava alucinado pela pressa dos pensamentos sobre si mesmo. Era finalmente no centro de tudo. Tomado agora pela clarividência, sabia exactamente o que fazer a seguir. Parar e libertar-se uma vez mais dos seus limites de quadrado-círculo. Via-se estático de braços abertos, pernas hirtas, e então esticava um pouco mais as mãos para agarrar com força a circunferência. Puxava-a toda para si até se partir. Aí enrolava essa linha-circulo num novelo, até não haver mais raio que se visse. A seguir passava ao mais difícil. Dar a volta ao quadrado. As forças vacilavam-lhe sempre quando lá chegava. Um desafio de Hércules esse de sair da caixa. Distendia-se todo no auge das suas energias e partia um dos vértices até sentir o ar fresco a entrar-lhe pelo desalinho dos cabelos. Puxava determinado pelas quatro linhas e juntava-as de seguida às outras. Já não lhe restavam mais limites. Ele era agora a equação total que lhe permitia recriar-se até ao infinito. Depois pegava no seu novelo e começava a desfiá-lo até ser uma linha recta até ao fundo de si. Metia-a com cuidado no interior do lápis acabado de afiar onde todas as suas limitações-circulo-quadrado seriam agora todas as suas possibilidades em grafite. Era com elas que iria desenhar. E nesse exacto momento saía para a tela e pintava a imensidão da sua alma.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Rua Menino Jesus


Lembro-me inúmeras vezes de ti. Chegas até mim pelas razões mais diversas e avulsas pequenas referências que a alma colhe daqui e dacoli sem interessar porque é assim. Às vezes até começo a falar como tu, dou por mim a dizer aquilo que não gostava realmente de te ouvir; caio nessas afirmações, reacções, gestos ou comportamentos-herdados, coisa de genes, mistérios humanos, surpreendo-me, mas por outro lado vejo nisso a aproximação do amor que te terei continuado. No outro dia, dei uma gargalhada maliciosa, igual em tudo às tuas. E ri interiormente hesitando entre a contrariedade da versão que uso do que te criticava e o aconchego de mim em ti que me trazes certamente ainda ao colo. Larguei cedo o cordão umbilical, eu sei, mas houve sempre uma cumplicidade especial entre alguma parecença de nós. Quando um amor assim enorme parte ficam mais afloradas as guloseimas do coração . Pode ser sobrevivência afectiva ou gula eterna mas enche o nosso peito dum calor doce e intenso que tempos e vidas depois continua sem idade.

Estamos em época de Natal. E Natal és tu sempre connosco. Mas este ano, em altura de todas as recordações, há mais memória de ti pelas ruas. Há novidades nas cidades, há estandartes vermelhos com a figura do Menino Jesus espalhados pelas varandas e janelas dos católicos, a enfeitar as casas que se transformam desta forma em lares. Lares em Cristo. Tu irias adorar. Não posso dizer que seja tão animado, festivo ou fascinante como as milhares de bandeiras de Portugal que se viram espalhadas país fora durante o “euro” que isso é inultrapassável, foi emocionante e lindo de se ver, era de todos os portugueses e não só de alguns. Mais maravilhoso pelo seu significado só mesmo o branco vestido por Timor. Mas estes meninos também são bonitos, sim; tenho pena que não estejas cá para os ver. Comprarias logo uma dúzia e darias aos teus filhos e netos ou talvez dúzia e meia que eles já são muitos e a verba é para ajudar como tu gostavas.

Sabes? Antes de me pôr a criticá-los naquela minha pressa opiniosa com a qual por vezes te aborrecia, resolvi sossegar um pouco, reflectir sem urgência, e de ideia em ideia fui subindo uma escada rolante que me conduziu até ti. E assim, por ti, mãezinha querida, resolvo ficar calada e não dizer por aí aquelas coisas que me saem esbaforidas de trás para a frente em cachoeiras à flor da pele; antes escolho transformar estes estandartes em bocadinhos de ti que tanto amavas o Menino Jesus que nasceu, cresceu e foi sempre o teu Pai do Céu.

Há uma Rua Menino Jesus, em Évora, não sei se sabias. Hoje essa rua é tua. Digo-to eu que estou lá neste preciso momento contigo. Caminhamos satisfeitas como antigamente de braço dado para não escorregares nas pedrinhas mais polidas da calçada.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Rua da República

Altas horas da manhã. Passaria das 4. Não se atrevia sequer a olhar para a angustia do despertador que não tardava o iria arrastar para outro dia de olheiras-de-fato-e-gravata. Fim de sono por decreto a bem da nação. Estava a dar cabo dele aquela vida itinerante de eurorapaz a peregrinar para Bruxelas semana após semana. As emissões de CO2 das milhas que se acumulavam no cartão de passageiro frequente, reentravam-lhe agora pelas narinas e sufocavam-lhe a respiração. Sentia-se com falta de ar. Com vontade que alguém lhe pusesse vick no peito e o mundo ganhasse novamente cheiro a mentol e eucalipto. Puxou mais para cima o lençol para chegar aos 7-anos-mãe-hoje-não-vou-à-escola-que-me-dói-a-garganta. Tossiu. Pigarreou para legitimar para si próprio que era real aquele arranhar todo que o incomodava por dentro. Puxou ainda mais o lençol e ficou escondido lá debaixo na esperança de passar despercebido. Nestas ocasiões achava sempre que devia ter seguido os passos que lhe tinham destinado no berço. Vida pacata. Café no Arcadas do Giraldo. Sesta no verão. Sábado de jipe a distribuir a jorna na herdade. Noites de mal-dizer o ministro da agricultura e dias perdidos no sufoco dos projectos, dos subsídios, das finanças. Um rancho de filhos vestidos em Badajoz, Touradas às quintas em Lisboa. Caçadas aos domingos. Javalis nas noites de lua cheia. Seguros das colheitas. Cortiça de 9 em 9 anos. Carro novo. Barriga a mais. Férias reforçadas. Cabelos a menos. E vinho. E lareira. Mas não. Preferiu os sobrinhos. E a Lisboa a tempo inteiro com a politica a dar-lhe trezes nos cadeirões de direito, que não lhe restavam horas para mais. Fez os amigos certos. As amigas erradas. E trepou por elas. E agarrou-se a eles. E subiu até aos 30 mil pés das idas semanais para a Bélgica, ou a França e mais as comissões especiais que às vezes lhe traziam o prazer do sol mais ameno do lado de lá do Atlântico. Enroscou-se assim que ouviu o som estridente do galo, que não lhe dava tréguas, a dizer que a manhã estava aí a rebentar. E ficou sossegado. A suster a respiração. E subitamente ouviu um som que não lhe era de costume. Uma. Duas. Três. Quatro. Cinco vezes. O sino da Sé. As boas notícias. Afinal não ia haver hoje nenhum avião para apanhar. Era Évora. Era Natal e o tempo dele ser novamente o menino. Daqui a pouco não ia ter o taxi à espera para o levar para o aeroporto entre semáforos cheios de gente aborrecida à espera de engatar a primeira. Podia dormir. As torradas da Josefa iam esperar quentes para lhe dar por dias o sabor da vida que optou por não trincar.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Rua do Cano


Contavas-me que em miúda quando ias em passeio de automóvel com os teus avós, atravessando aldeias, campos e abandonos, invejavas as raparigas que vias à beira das estradas. Admiravas as cores garridas dos seus trajos e questionavas invariavelmente para onde iriam quando te pareciam tão afastadas de tudo ali perdidas no meio daquele espaço imenso. Imaginavas contudo uma vida sã estampada naquelas bochechas geralmente rosadas e cheias. Confundias ruralidade com liberdade, simplicidade, lareiras e prazeres donde partias para o que julgavas ser a felicidade. Demoravas horas de nariz colado ao vidro viajante, inventando histórias de família, feiras com bailarico e parcerias de amor. Sempre com aquela ideia da concertina agarrada à tua imaginação.

Chegavas a casa nauseada com a alma empurrada para a realidade que trazias do passado, num amuo descabido pela sorte que envergavas. Desejavas atirar o teu berço pelo cano abaixo e amaldiçoavas as raízes que nascidas contigo empurravam as ideias para o topo do sobreiro que crescia em forma de aqueduto no teu próprio jardim. Circulavas lá por cima e dançavas nos seus ramos com sorrisos parvos, distraídos, em trejeitos alternados com fantasias em holofote sobre esplendorosas acrobatas de circo. Duma forma ou de outra o movimento aparecia-te circular, simétrico, labiríntico. Sempre suficientemente veloz por forma a roubar-te tempo para que te incomodasse menos assim. Nunca percebeste que força era essa, porque querias muito esse tempo para te debruçares sobre o acaso do teu espaço que também era enorme. Era, julgo eu, a força da berlinda a perder vantagem para a da acomodação, obrigando-te a virgulas e reticências já que te vias incapaz de a contornar. Eras dura contigo e criticavas-te pela inutilidade desses pudores. Empurrando-os num ápice de seguida pelo cano abaixo.

Nessas alturas de poesia abdominal engolias o pó das memórias e caminhavas horas a pé para te limpares desse lado que eras tu. Corrias contra os ventos até à expulsão extrema dos fantasmas que conseguias, assegurando somente a permanência do que realmente valia a pena.
E aí bailavas com fluidez sobre as palavras, temperamentos ou acordes junto aos amigos do teu próprio circo. Engrandecias liberta de padrões e manias, transformavas-te em bailarina de desejos sonhados e partilhas uníssonas. Saltavas do sobreiro patriarca e descias à terra como se subisses aos céus.

Agora, transformaste as memórias em música e nunca mais te surgiu a ideia inútil e estúpida de as deitar pelo cano abaixo. Não mudou grande coisa, deliciaste ainda ao som da concertina; apenas lhe acrescentaste umas teclas, uma maior caixa de fole, umas novas vibrações e divertida gingas o corpo ao som do acordeão.

Rua Nova

Lido com ligeireza trata-se, de caras, de uma sereia com cabeça de cavalo. Ou de égua. É indiferente, que as sereias são como os anjos – o sexo só se discute. Não se desfruta!

Pelo menos a sereia com quem convivi desde a idade de berço, tinha cara e tronco de mulher. Assim, como deve ser. Estava instalada – como agora se diz – juntamente com elementos do seu habitat imaginário, na parede do alpendre da casa de férias. Obra de uma ceramista amiga da família, dava o nome à casa, embora não houvesse qualquer toponímia. Foi vendida com a casa. Afinal como se poderia vender a casa da sereia, sem ela? Não seria a mesma venda.

O que parece claro é que, de homem não se trata. Um homem não escolhe ser sereia. Ou melhor, a generalidade não escolhe. Alguns escolherão, mandam as regras da tolerância. Mas não nos desviemos. O que escolhe é ser dragão ou unicórnio. Os primeiros, muito populares a norte; os segundos, por todo o lado, já que bicórneo, ninguém quer parecer.

Porém, se lermos atentamente, a criatura parece bicéfala. Repare-se que não perdeu a cabeça e juntou o seu tronco a uma cabeça de cavalo. Antes juntou o corpo a uma cabeça com cauda de sereia que, como sabemos, é igual à do robalo ou do salmão. É uma questão de gosto ou, do que estiver disponível na praça. Assim como, a tão na moda, “cozinha de mercado”. As escamas, de serpente em vez de peixe, devem-se à coquetterie das sereias; só serpentes e afins mudam de pele, o que lhes permite as mais variadas toilettes ao longo do ano.

Afastada a hipótese de se tratar de um homem, mesmo com h pequeno, resta-nos a certeza de ser uma amazona. Trata-se seguramente de uma mulher que monta com grande finura, ao ponto de juntar a sua cabeça à do seu cavalo. O que a distingue é, em vez de casaca, enverga uma capa de lamé que se confunde, esvoaçante, com cauda de sereia e brilho de serpente.


(Este texto , extra-blogue-mas-já-agora-também-serve-e-publica-se-na-mesma, teve como mote o seguinte TPC dos co-autores aqui do burgo:


" À primeira vista não passava de um ser que juntara o seu corpo humano a uma cabeça equina, com cauda de sereia
e escamas de serpente"
Humberto Eco
= o que aconteceu a este homem para se transformar nesta criatura?
)



Outro AQUI e o outro ALI

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tavessa da Campina

Lá ao fundo começava a campina! “Planície extensa sem povoações nem árvores”, segundo reza o dicionário de língua portuguesa mais consultado na Net. Hoje, a definição não se aplica. Só se tivessem deslocado para fora de portas, a Travessa. Ou, nem isso! As árvores – palmeiras, sobretudo – mais que muitas e as casas dos resorts de luxo, cem vezes as dos montes. Tá bom de ver!

Obra do Alqueva. O lago, como sempre, é o maior da Europa. Pode regar a relva dos campos de golfe que dão mais do que os borregos, no Alentejo. Quando foi construída era uma velha aspiração dos agricultores do sequeiro. Como levaram tanto tempo a fazê-la, os ditos morreram sem não antes passarem pelas aventuras dos anos setenta que muito os maçou e depois por todas as PAC que muito os acomodou ao dolce fare niente que a União inventou para substituírem os ranchos por empregados de escritório e o feitor por técnico em regulamentação agrária. Os agricultores não têm culpa nenhuma. Isto assim dá mais jeito aos da cidade.

Então, os aldeamentos turísticos geram emprego no Turismo e antes, na construção civil. Geram mais crédito à habitação e criação de instrumentos financeiros como os fundos imobiliários onde se pode aplicar o capital. Para não falar dos time-sharing. Os trabalhadores rurais viram jardineiros, os aguadeiros como uma curtinha reciclagem viram barman. A Base Aérea de Beja, aeroporto internacional, desafogando a Portela e assim Alcochete já não faz falta e isso se calhar já é mau para os construtores que entretanto já tinham feito o alargamento de Beja. Não de pode ter tudo. Agora, a LTU, famosa companhia de charters germânica transporta uma carrada de alemejanos, como lhes chamam carinhosamente os alentejanos. Habituados às cálidas águas de Palma de Maiorca, quando eram mais pequenos, trocaram a praia pelo golfe, a canoagem e a pesca do achigã.

É vê-los depois de uma partida de quatro buracos e meio – 25% do que era habitual – porque agora o que interessa é o taco da manhã. Hábito importado da caça, o taco é a paragem para o pequeno-almoço e inclui normalmente umas tirinhas de presunto e uma linguiça e farinheira assadas acompanhadas de um belo branco alentejano que estão cada vez melhores, por influência dos alemães que os querem mais frescos e menos alcoólicos que os dos primórdios. A seguir ao taco são mais quatro buracos e meio e almoço no Club House. Uma bela açorda feita pela campina – a da Travessa – que embora o marido tenha deixado de tratar do gado bravo e agora guie cortadores de relva não deixou que a mulher – cozinheira de mão cheia – perdesse o nome como ele a profissão.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Rua do Escrivão da Câmara


Vou-te escrever até que o tinteiro se gaste. Até que não haja já mais nenhuma gota azul para sair, certeira, pelo bico do aparo e se transformar em palavras de amor. Aposto que já reparaste que voltei ao passado das canetas de tinta permanente, aparadas a ouro para escrita fina de salamaleques e cornucópias. Gosto deste romantismo senil. Desta prosa que me sai com patine emprestada pelo personagem que levo à cena. Dá-me gozo esta coisa de cofiar os bigodes de século dezanove, que também deixei que me crescessem, e que me dão agora este ar aristocrático de alfinete de pérola a rematar a gravata de seda. Penso em ti. Penso-te ali na fotografia que emoldurei com um passepartout exageradamente grande para que me lembrasse do oásis que és, quando te vejo pequena, de monóculo em riste. Reclino vagarosamente a cadeira e sinto o prazer no ranger da madeira antiga a dar de si. Tranquiliza-me este som familiar que ouvia em pequeno no escritório de meu pai. Repouso as mãos no tampo e deixo que os dedos afaguem ao de leve o polimento. Vejo-o novamente ali nos meus gestos repetidos de mãos iguais. Ajeito o mata-borrão cheio das memórias difusas dos meus avós que não conheci. Decidi agora que a minha existência seria isto de ser antigo. Deixei que o romantismo descesse sobre mim e me adornasse o cachucho que trago de herança falida nas armas das duas águias, hoje embalsamadas, e um torreão, agora uma ruína Vesti esta pele de jaquetão e polainas para convenientemente ilustrar as vontades de te cantar numa elegia. Reclino-me um pouco mais. Estico-me confortável e deixo que me estalem as falanges à sua vontade. Precisava deste teatro ao espelho para te trazer à vida. Para te trazer da ponta-da-língua à redondilha da estrofe. Escrevo-te os poemas que nunca ousei dizer. Pensar. Porque sei que os não lerás. Porque agora sei que os não escrevi a tempo. Endireito-me de supetão. Hirto. Volto à escrita. Deixo que rebentem sílabas. E versos. E que me saiam pela ponta do tacto todos os sentidos com que nunca te toquei.