segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Praça de Sertório

O sexto sentido dela não era sexto. Era mais um sétimo, como um grande espelho retrovisor de cruzamento, convexo e alinhado, onde os faróis, à noite, se reflectem antes que um carro sequer se adivinhe. Sentada na soleira da porta pressentia a estudantada que a seguir iria virar a esquina, de capa e batina, a arrastar cervejas e sebentas pelas noites da cidade até à formatura. Via sempre mais à frente. Com proporções aumentadas. Via-os a cada um. Mais além, de forma incontrolável, monótona, repetitiva. Adivinhava-os depois dos estudos. A trabalharem nos escritórios rotineiros. Contando os dias para o fim do mês das contas por pagar a trás do balcão. A suspirarem pelas férias na Republica Dominicana de pulseira de tudo incluído a alarvar mojitos. Enganando-se, ano após ano, nas 12 passas de pedidos para que tudo permanecesse sempre igual. Via-os depois perder o entusiasmo pelas mulheres e a ligeireza de pantufas frente ao telejornal. Via tudo isso de forma convulsiva, mesmo trancando a porta, fechando os olhos e apagando as luzes. À menor pista, cheiro ou som, abria-se num ápice a indiscrição despida das vidas nuas. Sem apelo nem agravo, como se estivesse sempre a assistir ao grande cinema ao ar livre na Praça do Sertório, numa noite de Verão e a ver as cenas agigantadas de sonhos e a previsibilidade sem escapatória. Era assim desde o berço. Nada escapava ao seu sétimo - apurado, certeiro e sagaz - sentido de conhecer os homens. Nada lhe escapava. Até hoje. Noite de Lua Nova, 28 graus num Agosto quente como os outros, sentada, de facto, numa das últimas filas de cadeiras na Praça, à espera que começasse a projecção e a Alice no País das Maravilhas inundasse de som e luz todo o espaço. Ele veio e sentou-se a seu lado. Ela olhou-o de soslaio para o conhecer por dentro mas nada viu. Não conseguiu descortinar o que se passaria a seguir com aquele homem de olhar determinado e mãos compridas. Não lhe via o futuro. Não lhe adivinhava certezas desenhadas nas rugas, que a luz da rua fazia contrastar. Não penetrava nas histórias que lhe haviam de acontecer. Pela primeira vez nada via. Só um grande ecran em branco iluminado. Olhou então para ele e encheu-se com os cinco sentidos da surpresa numa excitação pueril do simplesmente fantástico. Abandonou-se no vazio permonitório e com o que lhe restava do seu sexto sentido, percebeu ali, sorrindo enquanto a Alice se deixava escorregar pela toca do coelho, que com ele nunca nada iria conseguir adivinhar. Ela e ele eram um filme em que tudo estava ainda por dizer.