quinta-feira, 14 de abril de 2011

sábado, 29 de janeiro de 2011

EXTRA - Lisboa Largo do Chiado (III)

Cheguei à conclusão que andamos às avessas do Chiado. Não por embirração, mas andamos.

Ele nasceu em Évora e veio para Lisboa. Ao contrário das Ruas Ermas, maioritariamente nascidas em Lisboa e todas a morarem em Évora. Ele tomou nome de rua lisboeta – na verdade chamava-se António Ribeiro. Nós pretendemos reescrever as ruas eborenses. O normal é dar nome à rua. Foi o que Garrett fez à sua, em 1880. Jamais, tomar o nome da rua onde morava.

Fez-se Franciscano, não para ser pobre, que já o era. Aproveitou os seus talentos para aprender a juntar letras; o que se agradece, pois a sua natural aptidão para a tunanteria jamais teria passado à posteridade, só pela oralidade. Mas os preceitos da ordem também não iam com a sua personalidade e portanto, acabou noutra cela, de menor recolhimento – a do cácere.

Contemporâneo de Camões, foi Bocage, avant la lettre. Boémio e trocista, grande imitador, sempre de hábito clerical vestido – tê-lo-á trazido do mosteiro – conta-se a história de, haverem entrado ratonários em sua casa, lhe terem levado o melhor que tinha; tendo visto os larápios carregando os seus haveres, resolveu segui-los, levando consigo alguns pertences que haviam deixado; já cansado de os perseguir, perguntou-lhes: “para onde é que nos mudamos?” Com ainda maior sentido de humor, os malfeitores devolveram-lhe o furto. Não sabemos se lhe arrumaram a casa…

À laia de compensação, por em 1880 haver trocado o nome à rua – de Chiado para Garrett – a Câmara Municipal inaugurou-lhe estátua em 1925 e, ao mesmo tempo, devolveu a sua alcunha ao Largo das Duas Igrejas. Hoje, que o largo se fez maior, escorreu em várias direcções. Todos querem ser Chiado!

NOTA: Texto escrito a propósito da apresentação do livro em Lisboa no dia 26/1/2011.

EXTRA - Lisboa Largo do Chiado (II)

Gostava de se passear já tarde por ali, quando só havia um ou dois vagabundos a cirandar a estátua do Chiado. A animação era um pouco mais acima, entrando pela rua do Norte no emaranhado dos grafites, com as minis a escorrer à porta das tabernas e um ruído de fundo com cheiro a vinho tinto e fado. Preferia o lado de cá da fronteira do Camões onde a prosa era mais serena a estas horas. Não vinha fazer nada de especial. Vinha para se escutar na calçada em frente à Brasileira e encontrar por ali os poetas e os artistas que ele sabia costumavam vir tomar café àquelas horas. E era naquele sossego tardio de pombos de cabeça na asa que os começava a escutar ao ouvido. Nunca falhavam o encontro, já que não tinham melhor sítio para onde ir. O Bocage era sempre o primeiro a abrir-se mais as suas obscenidades numa algazarra que atraía os outros. Eram as pancadas suficientes para que se juntassem muitos a seguir, em seu redor, sem século definido nem género nem prestígio que os distinguisse. Eram iguais como as suas letras mortas. Etéreos como as frases que ainda se cantavam ou se diziam arrastadas a altas horas nas tertúlias mais ilustres, ali nos clubes e nos grémios do lado. Ele gostava de os ouvir. De todas as formas e feitios, sem preconceitos literários ou intelectuais de jornal de sábado de manhã. A sua crítica era a gargalhada ou a lágrima que se soltava amiúde sem ninguém ver nem escutar. Comovia-se com as pieguices e proezas de quinhentos, os dramalhões de novecentos e a crítica acutilante dos setentas. Por vezes ficava meditativo a pensar num ou noutro verso mais tocante. Outras, enlevado pela paixão impossível. Pela morte. Pela sugestão do Pessanha. A solidão do Nobre. O real do Cesário. Passeava por todos eles sem nenhuma ordem nem cronologia. O simples prazer de os ouvir e tê-los só para si enchia-lhe o écran dum cinema que só com versos se pode ver. Havia noites em que ficava sentado ao lado do Pessoa na esplanada, horas a fio, sem chamar mais ninguém, até ver o rio da sua aldeia a ficar maior que o Tejo. Mas geralmente era à volta da posse de convite às histórias do poeta de Évora que ia matar saudades afogado em nostalgia. Com rio ou sem ele pensava na sua terra e em como eram belos os versos lavrados pelo arado. Pensava no Manuel da Fonseca. No Régio. No Caeiro e vinha-lhe ao nariz o cheiro a terra molhada com que se fazem nascer as searas. Sem dar por isso o Chiado passava a ser montanhas e planícies e florestas e o mundo todo que se torna todo mais real na caneta dos poetas.

NOTA: Texto escrito a propósito da apresentação do livro em Lisboa no dia 26/1/2011.

EXTRA - Lisboa Largo do Chiado (I)

Mariazinha subia a Rua do Alecrim com a agilidade de quem vai a descê-la. Passo ligeiro e hábil como se tivesse peso de pena de pombo. Levava um guarda-chuva que segurava deitado, e trauteava a música da mariquinhas, gingando um pouco à esquerda e à direita. Ao chegar ao topo, largou a casa, a mariquinhas, o peso pluma e encostou o peso do corpo à pega da sombrinha. Boa tarde Chiado, boa tarde poetas. Artistas e livreiros, actores, cantores, e pedintes, rapazes, raparigas, velhos que não precisam de género, gente que também não, gente nova e gente suja, gente asseada, engraçada e sem graça, gente de feiura e gente bonita, senhores e catraios, boa tarde, tarde de chiado cheia de gente.

Mariazinha tinha a força de um fado.

Olhou para a escultura do Camões cumprimentou-o como se faz aos grandes e sentiu sobre si os olhares variados a que estava habituada; fossem de agrado, de carinho, de compaixão, incidiam no seu peito enorme, mas nem interpretava as expressões que via apenas lançava um sorriso rasgado de mulher. Mariazinha de alma danada, tonta, louca, ou sábia, ninguém pode sabê-lo porque tudo é o mesmo e se confunde. Rodopiou o corpo à volta da sombrinha e dali seguiu para a Igreja da Encarnação. Via-se-lhe os pés por baixo da saia comprida bem calçados em bota preta, no fundo ao fundo ia bem arreada. Cumprimentou os amigos dos degraus de pedra, fez-lhes uma festa materna, entrou, ajoelhou-se à entrada baixou a cabeça fechou os olhos e rezou. Permaneceu imóvel vinte minutos seguidos e quem por ela passasse nem um pio lhe ouvia. Mariazinha rezava baixinho com a mão no coração e a vida na mão. Ao Chiado voltou lavada, e sorridente espreguiçou-se atravessou a rua instalou-se na Bénard e escarrapachou-se na cadeira da esplanada.

Estava em casa. Sabia que já não era a mesma coisa, a sua casa, não tinha idade mas tinha o tempo, o momento, e o desenquadramento. E o guarda-chuva que a protegia dos poetas lingrinhas.

E mais? era Domingo e a tarde estava brilhante e luminosa e aquela agitação apetecia. E era hora de se sentar no chiado, gozar o chiado e respirar o chiado; conversar, tagarelar, ouvir, contrariar, opinar, rir, e discutir. Com fôlego e chama. Para isso fez o esforço que podia. Que ainda conseguia. E amava. E sentia. E ainda bem. Que foi para isso que se inventou “o” Chiado.

NOTA: Texto escrito a propósito da apresentação do livro em Lisboa no dia 26/1/2011.

sábado, 22 de janeiro de 2011