domingo, 28 de fevereiro de 2010
Travessa da Bota
terça-feira, 23 de fevereiro de 2010
Travessa da Lança e Dardo
Costumava primeiro desenrolar, vagarosamente, o novelo libertário que tinha no bolso, outrora as fronteiras de si. Esticava-o ao longo do espaço novo, por descobrir. Por vezes desenhava filas paralelas, a fazer de conta serem carris de comboio por onde passariam as pessoas apressadas mais as suas ideias banais. Deixava que viessem. Arquitectava então modelos em que primeiro esticava, sem cálculos de estrutura e outros rigores de género, as linhas até se fazerem as palavras. Moldava-as. Modelava. Outras vezes eram as palavras que se faziam a si. E o transformavam. Fosse como fosse, para Rafael era sempre um prazer esticar as suas linhas, uma após outra, transmutando poliedros e círculos para desenhar sintagmas e depois metê-los, onde livres, lhes apetecesse ficar. Esta era a maneira que conhecia de fazer textos redondos, acutilantes, ageis, anquilosados, esdrúxulos. de todas as formas, propósitos e feitios. Hoje não seria assim. As linhas trazia-as enroladas na garganta. Desta vez não iriam para o papel. Clamavam rasgo. Levou-as para a forja. Depois ao rubro, na marreta e na bigorna tratou do resto. Fez delas ferro pontiagudo. Lança e Dardo. Com eles escreverá a sangue a raiva o que nenhuma palavra pode contar.
Rua da Alcárcova de Baixo
Pátio do Salema
Salema é claramente, apelido. Mas também é cumprimento. Uma saudação. Se entre turcos, um salamaleque. Se amaneirado, também. Curiosamente, um cumprimento de um turco façanhudo, daqueles de farta bigodaça negra ou de um andrógino tem o mesmo nome.
O primeiro, afectado pelo excesso de virilidade que aparenta; o segundo, propriamente dito, afectado. Lá no Pátio, não morava nenhum turco. O mais parecido, o Janica; pelo bigode e jeitão para cantar. A sua conversada, a Salomé, de avó marroquina, morava perto, no Beco da Espinhosa. Ora de quem se abespinha, não se devem esperar salamaleques e uma salema ainda vá, mas só nos quinze de dias de Agosto, quando vão todos a banhos para Porto Covo e, as assam no braseiro.
Salamaleque fazia o Salema à vizinha do r/c Esq., sobrinha do alfaiate da Condessa – o Silva – que usava uns corpetes feitos por seu tio que lhe realçavam as redondezas. Quer no pátio onde vivia, quer no outro, das redondezas, a Praça do Giraldo. Aí, giralmente, passeava nas estivais noites de calma. Porque um pátio é uma praça mais pequena. Sem direito a estátua, pelourinho ou fonte. Com direito, isso sim, a cantigas. Que o diga o Janica da Salomé!
domingo, 21 de fevereiro de 2010
Travessa das Casas Pintadas
Travessa do Pão Bolorento
Lá no fundo de um baú qualquer tenho deixado, na conveniência das bolas de naftalina e jornais antigos, as minhas frases mais certas. Dobro-as com toda a paciência e escrevo no verso, com caligrafia de avó, uma data. Alguém miúdo as descobrirá um dia em sobressalto, no meio de fotografias gastas e bilhetes de espectáculos de gente antiga. Adivinho-lhe um sorriso gaiato a despontar na cara. Excitação de tesouro de laçarote. Boca aberta quando, depois da surpresa ao colo, se sentar de pernas cruzadas encostado à parede do sotão a mastigar o que se esconde em todas elas. Comecei a passar-me toda para papel, quando há um ano me assolou um medo que se me gastem as palavras. Decidi então que as iria poupar, para que as não levasse o vento, e comecei a encaixotá-las a todas. Vesti-me então de idade e assumi-me velha no esquecimento à tarde da conversa da manhã. Aceitaram-me assim. Deixaram-me em paz na minha repetição e na vulgaridade do desinteresse de comentar na rua o tempo que faz e vai fazer. Reservei-me, falando quase só em monossílabos. e assim fiquei inteiramentemente disponível para a memória das minhas importâncias. Escrevi-as quase todas. Escudada pela senilidade aparente de meias trocadas de duas cores. Hoje acordei ao avesso e decidida do contrário. Com a vontade de abdicar das minhas certezas. Que pão pode deixar sementes? Que pão bolorento pode saciar fomes futuras? Subo até ao sotão. Desembrulho-me em todas as palavras que guardei e mato a fome com a frescura do pão vivo que fiz para mim. Hoje decidi-me a aceitar para os outros o incerto. Vou deixar o baú vazio das minhas convicções para que o gaiato de amanhã lá possa guardar as suas sementes. O pão da vida.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
Rua do Alfaiate da Condessa
Quando lhes queria prender a atenção, zás: “era uma vez um botão assassino”. Funcionava melhor que a história do “fecho éclair estrangulador” ou a do “velcro escalpelizador”. Esta história de índios pós-far-west, adaptava-se como uma luva quando o tema das histórias era o futebol e se dedicavam, com imagens vídeo, a escalpelizar os jogos da jornada anterior. Além de gerar algum burburinho, fruto das preferências clubistas, as meninas sentiam-se menos atraídas, de alguma forma discriminadas.
Elas preferiam a história do “fecho éclair estrangulador”. Mas aqui os meninos, sempre apreciadores de decotes, queriam era corrê-los. Ao contrário. No sentido inverso da falta de ar. O resultado, como se pode imaginar, pouco brilhante, gerando uma vez que outra, alguma falta de decoro, pois algumas meninas achavam graça à brincadeira.
A nossa contadora de histórias tinha tentado tudo. Desde o clássico “Capuchinho Vermelho”, já surrado de tanto uso que mais parecia, centenária gorra republicana; passando pelas versões da mesma história, onde estavam proibidas a utilização de vogais, ou de palavras, que produziam efeitos fantásticos na acção, desaparecendo, por exemplo, o lobo quando os Ós estavam vedados. De facto, quando esta vogal é mais verdadeira ou seria U. Porém, o que calava na audiência era, o botão.
Ele, em si, não fazia mal nenhum. Aliás, sem ser em série 007, com toda aquela parafernália tecnológica, nenhum botão comete homicídio. O problema é o tamanho das camisas. Aquele botão, estrategicamente colocado, estabelece a fronteira entre uma apertada ou desapertada. A Condessa gostava delas como só o Silva lhas sabia moldar. O seu alfaiate, Felício da Silva, deixava-as de forma que o botão adquiria uma vontade irreprimível de deixar de cumprir a sua função. Tornava-se – justamente – decisivo no ânimo do Conde. Enciumado, um potencial assassino de vítimas alegres. Enfim, os homens não são de ferro!
domingo, 14 de fevereiro de 2010
Travessa da Pulga
Ele. Estás nas minhas mãos há semanas. Quase terminada. Só mais uns retoques. Limar-te aqui o seio. Polir-te as madeixas. Repuxar os olhos abrindo um pouco mais a sobrancelha. Aprofundar-te a curvatura do pescoço, ali à direita. Acertar a geometria da clavícula para que se reforce o porte altivo. Não tarda o teu coração vai bater. Sinto-te real. Mais real do que tu aí à minha frente, que te emprestas, diligente, para me servir de rascunho à criação...
sábado, 13 de fevereiro de 2010
Travessa das Morenas
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
Rua do Inverno
Travessa dos Mascarenhas
Nesta Travessa nasceu o Restaurante Fialho, em 1948. Ainda não como restaurante, antes como tasca. Depois, os frangos assados e os comensais – clientes avençados – muito em voga nos 60. Só depois, as obras tornaram-no no que é hoje. Foram os pais dos actuais proprietários, fundadores do que viria a tornar-se, em nossa opinião, o maior dinamizador do turismo eborense.
Quantas pessoas se deslocam a Évora, de propósito, para ir comer ao Fialho? Mais as que vão tratar da sua vida à capital de distrito e lá almoçam ou jantam. Quantos restaurantes existem à sombra do Fialho? Quantos restaurantes abriram de antigos colaboradores do Fialho? Quantos restaurantes se conhecem em Portugal que utilizam a fórmula da casa da Travessa dos Mascarenhas? Se pudessemos tudo quantificar, seriam centenas de postos de trabalho gerados directa e indirectamente. Fornecedores de equipamentos e matérias primas que quase tudo devem à familia Fialho.
Por tudo isto e pela felicidade que distribui a tantos clientes, dever-se-ia fazer uma estátua aos Mascarenhas da Travessa. Mas por um princípio de justiça elementar, mudar o nome à rua para, Travessa do Fialho!
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
Travessa do Bagulho
É o tempo que não se move!
Sou eu que me movo à volta do tempo.
Tique-taque nervoso que me perturba o sono.
Lupa de saudade.
Recolho de ti cada bago e embebedo-me nos calores que deixas.
Sinto os teus cheiros em cachos que guardo,
não sei se em semente se em obra acabada.
Só sei que me esbugalho e me introduzo nas páginas que levas aí.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Travessa Damas
Lá viveu a partir dos 25 anos, quando começou a trabalhar, recém-saído da Faculdade. Tinha andado em Letras, não sabia se por vocação se de tanto ouvir, “em Germânicas andam as miúdas mais giras de Lisboa”. Por ele, que fazia os exercícios do Palma Fernandes com uma perna às costas, era indiferente, Letras ou Ciências. Mas se no Técnico “só havia gajos”, não era de arriscar. Sempre fora muito ponderado.
Alto e bem apessoado. Os jogos de tabuleiro eram a sua paixão. As damas a sua perdição. O xadrez nunca foi o seu forte. O gamão, à mercê do capricho dos dados, jamais o seduziu. Caprichos e sedução, antes o das damas.
Quando viu o anúncio no jornal, “T2 com pequeno jardim. Trav. Damas, s/n”, não pestanejou. Isso é de meninas.