quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Becco das Ramalhas

Andava às voltas todas as manhãs com as suas questões existenciais Assim que chegava e punha o pé no apeadeiro, não tinha como lhes escapar. As carruagens, o cheiro do óleo, os cigarros dos outros fumados à pressa com um pé no estribo, tudo aquilo lhe acendia uma luz imaginada no fundo-do-túnel. Via os comboios-com-destino-marcado. Letreiros luminosos a antecipar a hora da partida. Monitores a despejarem o tempo no destino. A temperatura. E questionava-se do porquê da ansiedade que sentia neste movimento repetido de horários e sincronias? Esta expectativa de chefe-de-estação a fazer soar o apito do ir para repetir a volta, dia após dia. A seguir saía e, logo à porta da estação, repetia o ritual de olhar para as montras das agências-de-viagem e ver Tenerife. Ver Sal. Ver Açores e todos esses mundos sem comboio para ir. Via-os num desespero da impossibilidade de não poder partir, ou seria como a justificação para não querer? Consolava-o saber esse mundo a duas dimensões de mar-azul-e-ondas e tê-lo coroado de preço promocional e dava-lhe prazer deixá-lo ficar ali estar colado à vitrina.
Era assim, neste moto-contínuo de pensamentos de repetição da vida, embalados pela cadência das rodas a estalarem ainda nos intervalos dos carris, que subia até ao Becco das Ramalhas. Era sempre o primeiro a chegar. Abria o ferrolho. Tirava o casaco. Vestia a bata-azul e começava, com uma paciência de Job a preparar a grande máquina do offset, para daqui a nada voltar a imprimir, uma vez mais, a encomenda diária de trinta e quatro paletes de bilhetes para a CP, que a Marieta, ao final do dia mandava, religiosamente, para Lisboa. Estava cada vez mais cansado. Saturado. Andava há anos a pensar como fazer. 56 para ser exacto. Um destes dias acabavam-se todas as dúvidas, as questões e repetições, o rodopio da ida-e-volta e a impressora a amassar papel. A solução estava ali á mão de semear. Acabada de fazer. A estalar. Sem que ninguém reparasse. Abarbatava-se a uma palete inteira de bilhetes e abalava, sem dar cavaco a ninguém, e ia dar uma volta ao mundo e tirar as dúvidas se os sítios todos que decoravam com hora de chegada os monitores da estação, era mesmo reais. Ninguém ia notar. Talvez a Marieta... pensando melhor, pelo sim pelo não. tirava mas era duas paletes e nunca mais ninguém lhes punha a vista em cima...

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