terça-feira, 15 de setembro de 2009

Travessa do Mal-Barbado

A cidade vestia-se das cores do Outono. Apagadas. As montras anunciavam já o frio eminente por entre os últimos biquínis em saldo. Adivinhava-se a brevidade dos dias, o breu a carregar as ruas com as goteiras a despejarem baldes de céu na calçada escura. Algumas árvores começavam a despir os ramos fustigados pelos ventos norte, do fim da tarde. Ainda restava tempo para os últimos passeios vagarosos, depois de jantar, com direito a café em manga-curta. Ainda havia, mas era já breve a espera até à hora dos casacos.

Enquanto, pausadamente, subia a Travessa das Invernas em direcção a casa, talvez por causa de uma grande semelhança desta com o nome da estação que se avizinhava, ou só porque dentro de si há muito se vestia de tons cinzentos, como se uma nuvem o perseguisse para todo o lado, sempre que por ali passava cirandavam-lhe pela cabeça pensamentos, sombrios, que cheiravam a frio e sabiam a noite. O sino da Sé ouviu-se ali ao lado, nas suas vagarososas batidas. Onze. Onze sincopadas e sentidas, uma por uma na ponta dos seus sapatos, na calçada escura. Era ele, elas e os seus pensamentos, dentro da sua cabeça a latejarem de um lado para o outro como no torreão o sino a trazerem sonoramente uma amargura inexplicável. Que belo trio. Pensou, deixando escapar um sorriso amarelo, de soslaio, para si próprio. Ele e a música de bronze, monocórdica a acompanhar com solfejo uma marcha de pensamentos fúnebres . Trio-harmonia de uma só nota numa procissão, como tantas outras, com o andor de si aos ombros numa inconsequência de um percurso fechado de adro-a-adro. Sentia-se velho. Agastado. Só. Sincopado com a estação que vinha aí. Apagado do que era, sem cor que se notasse.

Olhou-se, ao passar, num reflexo de janela e apeteceu-lhe sacudir a cabeça e deixar que lhe escorregassem os pensamentos pelas orelhas, expostas de pouco cabelo. E o deixassem em paz, devolvendo-lhe as suas cores de estio. Apeteceu-lhe que caíssem no chão e fossem levados pelas bátegas de água anunciadas. E que fossem andando, andando, até chegarem a uma foz qualquer de rio e se enchessem de sal no mar. Deu por si a agitar furiosamente a cabeça. Uma. Duas. Onze vezes com as badaladas. Ficou zonzo de tanto se abanar e não teve outro remédio senão encostar-se à parede do número 32. Tinham saído, finalmente, os pensamentos. Sentia-se tonto e vazio e a pairar.

Manteve-se parado. Estático. A recuperar a compostura, cofiando com determinação a barba de quatro dias, imagem de marca que lhe era o epíteto. Subitamente, começou-lhe a subir pelo nariz um cheiro intenso vindo dos confins da sua memória. Como por magia fez-se luz em seu redor. Um clique e zás. Descobriu o que lhe faltava neste anúncio de outono-inverno para vir. Finalmente entendeu a razão de tanta nostalgia. O porquê da secura dos passos arrastados. Fez-se luz. Descobriu que lhe faltava sal nos pensamentos. Maresia. Azul a juntar-se ao céu. Ondas. Espuma branca. Gaivotas em vez dos pombos a cagar o fontanário da Travessa Torta. Toda a vida foi marinheiro. Um lobo-do-mar sem porto-de-abrigo. Não podia estar ali. Não podia estar ancorado naquela doca seca. Tinha falta de mar. Faltava-lhe o sal. Era a hora de partir.

Deram com ele morto, aos primeiros raios de sol, de olhos bem esbugalhados com um sorriso enigmático a espreitar a barba por fazer, sentado à porta do 32. Estava hirto, seráfico, sem vestígios de dor nem sofrimento. Estranhamente, à sua volta um forte odor a algas, iodo e rochas enchia todo o ar. E quem o olhasse com atenção, ainda via, lá ao longe, no fundo das suas pupilas dilatadas, a primavera e o mar imenso que o levou vezes sem conta à terra prometida.

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