sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Travessa do Megué

Mariano Graciano era um menino da rua lindo. Rapaz único duma família de 4 irmãos habituara-se desde muito cedo a acumular tarefas de homenzinho com brincadeiras de rua. O nome herdara-o da sua avó Maria das Graças, assim mesmo no plural. Por altura do seu nascimento os seus pais estavam longe de imaginar que Deus lhes enviaria 3 meninas. Foram elas que ficaram com os nomes mais simples. E as tarefas. E a vida dos dias. E os dias da vida.
Mariano depressa se desembaraçou do seu nome e fez-se chamar pelas suas iniciais. Era simplesmente o mê.guê. O é abriu-se depois pelo sol das crianças.
Nas últimas tardes Megué chegava a casa sistematicamente cabisbaixo. Triste como o pano da cruz, nas palavras da Tia Eugénia. Não falava com ninguém, não queria brincar, não saía do quarto.
Vai falar com ele Mª da Luz. Ele só tem jeitos de se abrir contigo. E Megué abriu-se. Falou de rompante, as palavras em cascata. Saíam-lhe fortes em linha recta, de jacto; embora descaíssem de seguida em degraus surdos como o seu humor . Não era coisa simples. O rapaz parecia uma bobina a desenrolar-se: os amigos, as ruas, o movimento, as pessoas, os passos das pessoas, o ruído mais audível do que nunca nas calçadas, dos saltos, das solas, as discussões, mães e crianças, maridos e mulheres, desencontrados, barafustando, os preços, o disparate, o inútil, a tua avó, a madrinha, o míudo da tua irmã . Megué não conseguia estar quieto, remexia as mãos como se quisesse enrolar primeiro uma depois a outra, primeiro uma depois a outra… levantava-se, voltava a sentar-se, dirigia-se à janela olhando para fora sem ver, falando, descendo em rappel o rol de ideias que tinha dentro do seu peito. Maria da Luz imóvel. À espera. Escutando, quieta, calada, sem tempo. E Megué continuava em desfio: e umas iluminações palermas, pindéricas mais do que nunca, e uns sacos pendurados em todos os braços e mãos, embrulhos em corpos cansados e rostos semi risonhos, alegrias em modos faz de conta, gente perturbada, desorientada, em movimentações tontas, e mais e mais. O reboliço, a pressa, narizes e bochechas coloridos pelas montras, os tropeções nas lojas, as filas nos hiper. Na sua cidade pacata. Serena. Maravilhosa. Agora em frenesim.
Eu não desgosto do Natal, Luzinha, eu não desgosto do Natal…acho bonito…
Então?
Então, não percebo nada, tu percebes?
Não percebo o que queres perceber, Megué. Não há nada para perceber. É Natal...

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Largo da Senhora da Natividade

Acordara com a excitação da primavera por chegar e vestira a sua melhor roupa. De samarra às costas saíu ainda noite pelos carreiros com vontade de desfolhar cada minuto até chegar à cidade. As botas cheias de lama agarravam-no ainda mais à terra, à medida que se aproximava a passos largos do destino. Caminhava agora pela berma da estrada com o norte do pináculo da Sé lá bem ao longe. Ouvia os latidos dos cães presos a anunciar-lhe a presença, com o casario a roubar cada vez mais o espaço à planície. O chamamento de sinos lembrou-lhe que ainda tinha tempo de sobra. Por uma vez podia manter este vagar, já que as madrugadas do lugar sem história onde vivia não lhe costumavam dar tempo para grandes contemplações. Mas hoje sim, podia compassar a marcha e deixar que o cheiro a terra molhada lhe entrasse pelas narinas numa tontura de verde. Era um odor bom que lhe rasgava por dentro os horizontes. Não sabia como o descrever. Inalava-o e sentia-se ali irmão das ervas, das àrvores acabadas de podar, do musgo macio, das teias de aranha à contra-luz, dessa vida toda com que partilhava o apelido. Sabia que era essa coisa inexplicável a única razão que sempre o prendera à aspereza do campo naquela modesta casa da courela do Carpinteiro. Podia ter ido para o mar. Mas era salgado. Podia ter escolhido a América. Mas era só. Podia ter estudado e feito vida na cidade. Mas era menos. Optou pela irmandade de ficar. E foi feliz. Era agora um homem solitário desde a partida da mulher para o céu e dos filhos para a vida. Fechado no circulo que alternava entre as mãos calejadas das inclemências da jorna e o inverno à lareira a hibernar das estações. Um homem de poucas falas que se contentava com o que lhe saía da mãos e da terra e a quem bastava a naturalidade de existir e morrer e nascer outra vez.
A manhã já ía alta. Sem dar por isso estava quase a chegar. Sacudiu a lama da botas e caminhou a passo mais rápido na calçada da rua de Machede, deixando atrás de si a muralha aberta por onde se entra na cidade. Deixou escapar um sorriso de contentamento por ser hoje o dia que era. Todos os anos, já não se lembrava há quanto tempo, esperava pacientemente que ele chegasse, com a certeza que nele estava guardada a chave da sua vida. Uma memória que o fazia ser sempre o primeiro a vir, para assegurar com o seu silêncio e músculos que tudo estava pronto para a receber. Os outros vinham depois. Os pastores, os animais e todos os que iriam fazer as delícias da míudos e graúdos ao som das músicas da época. Mas aquela hora só lá estava o padre que, depois de lhe perguntar pelas novidades do ano, lhe pedia ajuda nos ultimos preparos e lhe dava a roupa para trocar. Passado momentos aparecia vestido a rigor com um manto castanho e um ar grave, de cajado na mão pronto para pôr a farta barba negra que completava o figurino. Dirigia-se então para a cabana e via se tudo estava em condições para a festa. Aos poucos os anjos chegavam para o ensaio. E os Reis Magos. Por fim a Maria apressada vestida na tradição de véu azul a realçar-lhe a beleza de míuda. Era a véspera de Natal. O presépio vivo estava montado no Largo e nele a promessa, numa repetição anual, da universalidade feita gente. Era, de facto, o melhor dia do ano. Era o dia de ele ser José outra vez.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Rua de Valdevinos

Carregaram-no com séculos de linhagem no nome próprio que lhe deram. Sempre que se olhava no espelho via-se general romano, conselheiro do rei, aristocrata rural. Via-se isso tudo menos o miúdo que era, ou que julgava ser. E não era só ao espelho. Quando abria a boca saía-lhe a rouquidão da aguardente que não bebeu, nas longas noites de cachimbo no alpendre da casa do monte a ver as estrelas. E ao pisar a porta da entrada, nas manhãs de farda dos Salesianos, fosse qual fosse o calçado que levasse, ficava de pés nus enfiados em sandálias de centurião, ou então de botas cardadas, irrepreensivelmente engraxadas e a luzir nas esporas. Passava os dias a olhar-se, a sentir-se a cheirar-se, estupefacto com o desconforto daquela anormalidade sensorial.

Sertório Júnior era sempre um outro antigo. Sem dúvida, uma criança diferente destinada a grandes feitos. O avô Sertório assim o tinha sido, nos tumultos da primeira república quando, conseguiu a proeza de se manter director-geral da fazenda na alucinação de 40 desgovernos. O pai Sertório regressado de uma curtíssima ida ao Brasil, foi estoicamente comandar a direcção-geral das finanças nas 16 intermitências da terceira república. Sertório Júnior estava pois fadado para os números, que as valentias das guerras, ou o chapéu de abas largas, eram coisas de outros pretéritos.

Mas não se conformava com esse destino anunciado de terceira geração. Sempre que o Padre Hermínio lhe puxava as orelhas pelas equações de segundo grau, o corpo pedia-lhe ar livre. A visão da economia de gabinete e gravata a tirar o pó a dossiês das finanças, antes do escrutínio público do jornal das 9, dava-lhe vontade de mudar de nome. De mudar de terra. De mudar de tudo, antes que tudo se tornasse verdade sem volta atrás. Sertório Júnior não queria contas públicas nem tampouco matemáticas privadas. Só disso tinha a certeza.

Esperou pelo dia certo de ser maior. Levantou-se mais cedo que o costume, determinado a ter finalmente nas mãos as rédeas do seu destino. Sem despedidas saiu pela porta das traseiras e aspirou fundo o perfume matinal do grande limoeiro. Bateu atrás de si o portão dos séculos, de bolsos vazios e sem certeza alguma. De cabeça erguida sentiu-se pela primeira vez homem. E pela primeira vez não se estranhou no corpo. Soube naquele instante que precisava de todos os Sertórios mais antigos que lhe corriam nas veias. Dos seus músculos. Da força e da coragem. Sentiu-os na alma, não da forma desajustada do passado, mas com a naturalidade da pele. E com essa convicção inabalável avançou determinado pela rua de Valdevinos. Assim viria a ser conhecido, na vergonha da família ao renegar o destino traçado no pó dos séculos. Assim foi livre para sempre. Senhor de si, escritor da sua própria história.

domingo, 17 de outubro de 2010

Praça do Giraldo (III)

Pergunto-me, às vezes, se a Praça do Giraldo não se deveria antes chamar, Praça do Salema. Como poderão ver – se comprarem o livrinho – Salema é cumprimento! Ora é precisamente no Giraldo que as pessoas se cumprimentam. Umas baixam a cabeça respeitosamente, outras estreitam as mãos, e cada vez mais, aparecem outros que fazem salamaleques. Para não falar dos que se cumprimentam entre dentes.

Foi uma tremenda injustiça toponímica da cidade não ter promovido o Salema, de Pátio a Praça, dotando-o de fonte, rotunda, pelourinho, estátua e tudo o mais a que tivesse direito.

Ainda se o Giraldo fosse Girado, vá! Aí gira, muita gente gira entre outra mais feia. Circulam peões e automóveis o que condiz com o putativo nome. Andam para ali às voltas e podem ficar girados, endoidecidos, mesmo malucos, no dizer do “povo irmão, brázileiro”.

Podia também chamar-se Geraldo. Parece gracinha de grafitador, esses grandes amigos dos edis, que lhes permitem programa e promessa eleitoral para depois, pela sua perseverança, trocarem nomes às praças, ora apagando lês ora trocando os is pelos és.

Mas assim sendo, o Salema fica a escutar o Janica da Salomé, que lhe enche o pátio de cantigas. Sorte dos dois: a daquele, agora que a vizinha – das redondezas – lhe devolve os salamaleques; a deste, se cantasse em Praça, só com a ajuda de uma brigada, tão grande é o recinto.

Praça do Giraldo (II)

Subiu os degraus de mármore gasto do número setenta e dois da praça central da cidade, a dois e dois, na ânsia de chegar à mesa a horas. Continuava excitado da véspera. Depois da fortuna lhe ter entrado nos bolsos das calças e lhe ter aumentado a conta.

Geraldo costumava levá-los de volta a casa cheios de raiva num vazio de cotão e chaves a tilintar, na nervoseira de ser madrugada outra vez. Ontem não. Limpara da mesa um emaranhado de cigarros inacabados de unhas roídas, de horas a fazer bluff, com as moedas a serem cada vez mais notas e as notas cada vez maiores. Até que lhe tocou o derradeiro cheque da desfortuna a seu lado, em forma de homem destroçado, e se fecharam as portas às 4 da manhã. Tinha sido em grande. Num crescendo de pares e trios e sequências de todos os valores, feitios e naipes. Mãos cheias. No fim, a derradeira sorte em fullen. De rainhas. Onde só faltou a de copas, como aliás na vida. Aquela que teimava em não lhe dar o prazer da desforra de solteirão por arrumar. Pouco importava isso agora. Tinha sido uma noite em grande. A sua noite. Mal conseguiu dormir, assaltado pelas ganas de voltar ao pano de feltro verde, gasto de cotovelos e nódoas do basfond.

Geraldo subiu agora os dois últimos degraus da escadaria. Respirou fundo. Ajeitou a aba do casaco, vestido de ar triunfador e cabelo em desalinho. Hoje seria em grande outra vez.

Mas não... Nada disso. O azar reservara-lhe uma surpresa. Um reviralho. Sem apelo nem agravo o mundo conspirava contra si. Logo hoje. Logo agora que tinha conseguido virar o jogo a seu favor...

No meio de tanto entusiasmo esquecera-se por completo, que hoje as mesas iam trocar as cartas e os naipes pelas escritas. Que a farra do calão a despropósito seria, por horas, feita de conversas de pompa e circunstância a bebericar em copos de pé alto as cerimónias de outros tempos. Hoje era dia de livros no velho palácio do setenta e dois. Não havia volta a dar. Sentiu-se baralhado de decepção. Mas durou pouco. Somente um ápice. O tempo de baralhar e partir e dar outra vez. O tempo de num piscar de olhos ver que a sorte afinal talvez não o tivesse abandonado.

A cartada hoje seria outra. Viu-a ao fundo da sala. Silhueta linda, numa sequência perfeita de vestido vermelho, cabelos longos, sorriso rasgado e taça na mão a transbordar uma luz vinda do além. Pareceu-lhe ver que ela lhe fazia um gesto lá de longe. Como que a dizer-lhe, de soslaio, que era hora de se sentar à mesa. Geraldo não evitou que um sorriso tímido lhe nascesse no canto da boca. Aproximou-se a passos lentos para não denunciar a mão. Tinha um bom palpite. Estava por tudo. Desta vez ia mesmo a jogo e até dobrava a parada.

Praça do Giraldo (I)

Regra geral o Geraldo era pontual. Parecia que o tempo lhe sobrava. Adivinha-se numa pessoa assim um personagem com a agenda cheia de vazios. No entanto a sua aparência desconfirmava-o, absolutamente. Vestia-se à pressa, não a correr, à lá pressa; à lá moda da moda da pressa; esta moda dos agoras, à moda do já! Geraldo, vestido de pressa mas com a maior tranquilidade nos gestos e no rosto.

Roupagem de pressa significa um casaco a voar gola enfiada para dentro, um cachecol a descair do saco, um casaco com os bolsos a transbordar, umas sapatilhas sapato que se pareçam com uns sapatos sapatilha, uma gabardine de ombro descaído pelo peso do “PC”... Regra geral o Geraldo era pontual. E nisso era um desigual.

Ao contrário da voragem da época e da sua contemporaneidade este personagem tinha tempo para tudo. Mais ainda, tinha uma atitude passiva, tranquila, redonda.

“Não, esteja à vontade, não tenho pressa nenhuma!” era uma frase que se lhe ouvia regularmente. Uma aberração, o tipo!

"Por favor não demore, estou atrasadíssimo...a conta, rápido, que tenho de ir embora!...olhe, desculpe, ainda demora muito??. Geraldo, à parte desta confusão.

E ali estava ele à esquina esperando pacientemente pelo seu amigo Tomé. Tomé aparecia-lhe sistematicamente pontual num atraso de 20 minutos. E Geraldo em geral aguentava.

Desta vez porém abalou. Faltavam 5 minutos para as sete. Viu Tomé bem ao longe correndo na sua direcção mas continuou, subindo, imperturbável, ignorando-o. O edifício estava à sua frente. Entrou. Tomé esbracejava, agitava em grito de espera.

Mas Geraldo desta vez não esperou. A cerimónia ía começar. A "Harmonia" abria as portas, os convivas entravam. Geraldo sentou-se, sossegado. Eram três os amigos que tinha à sua frente, e ainda o fotógrafo amigo dos amigos. A sessão de lançamento do seu livro ia começar.

Geraldo estava lá para os abraçar. Num abraço do tamanho duma praça. Enorme. Central.

Tomé alcançara a sala, procurava-o ansiosamente. Tinha o pavor de ficar só. Era isso sobretudo que os diferenciava. Tomé era nervoso, miúdo, pequeno. Geraldo era grande, combativo, e bonito sem pavor nem favor.

sábado, 2 de outubro de 2010

Ruas Ermas em papel















Nas livrarias a partir de dia 15 de Outubro. Selecção de alguns textos aqui publicados, ilustrados com fotografia a preto e branco. A não perder.

sábado, 25 de setembro de 2010

Largo dos Colegiais

Não vinha lá chuva ainda. Só um prenúncio. Há dias que o tempo andava instável. Um vento suão a trazer lá de longe o deserto cansado de sol. Como se a terra não aguentasse mais o dourado das searas, as uvas a cair em cachos cheios, o milheiral a rasgar em maçarocas ainda verdes o pão das Beiras. Jerónimo sentou-se no banco de jardim do Largo, abatido pelo peso do céu que se carregava sobre os ombros. Suava como o pó do chão, enquanto sentia que o quente abrasador, com resquícios de cheiros a terra molhada, o enrolava e era a sua mortalha. Dentro dela, ele. Com os seus fragmentos de memórias longínquas em brasa. Fumava-se. E lembrava a cada fumaça nuvens de outras eras. Recordava o chegar a França, a salto na fronteira, com o comboio a seguir na oscilação contínua da trouxa para a viagem, a gastar o pouco que restava até chegar à Gare du Nord. Lembrava aquele desassossego de nada ter para além de braços. Anos de sol-a-lua de dias curtos esgotados na labuta. A dor nos músculos, crónica, de homem-máquina a acartar baldes na contra mão. Ocorria-lhe aquela memória de carris e andaimes que depois lhe entrava pulmões adentro. Expelia uma baforada longa. Profunda. E a seguir um peso de tosse anunciada, com vontade de cuspir a sangue a ausência de sonhos que não teve, pela falta da escola na urgência de ter casa e mulher e cama, que o levou para longe daqui a construir súburbios para outros. Agora, finalmente, estava de volta a pisar a terra-mãe de costas para a muralha. Fumou mais um pouco até se recordar na ponta de si, incandescente, da descoberta do amor. Essa era a parte melhor da sua nostalgia acesa. A mais saborosa e viciante. No meio das memórias. Quando o verde enchia ainda os campos, assumidamente molhados com as chuvas de Maio e toda a seara não era mais que uma quimera magnânima de abundância anunciada. Inalava então a Paris desse tempo jovem em passeios nos boulevards, nas sombras maiores dos domingos de fim da Primavera. Davam-se as mãos a falar na terra onde veriam os netos a crescer. E era nesta parte que Jerónimo sorria. A sentir-se completo pela vida cheia de fazer crescer prédios e homens a quatro mãos, com a firmeza que só tem quem soube agarrar o amor. Ergue-se então do banco, aligeirado do peso da realidade, enquanto deita para longe a beata e deixa que lhe entre pelo nariz o cheiro inconfundível da Évora da sua meninice. Sente-se finalmente em casa, enquanto se delicia a ver os colegiais a passar de capa, batina e mãos entrelaçadas a lembrar que irão construir novos homens e livros para morar.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Praça de Sertório

O sexto sentido dela não era sexto. Era mais um sétimo, como um grande espelho retrovisor de cruzamento, convexo e alinhado, onde os faróis, à noite, se reflectem antes que um carro sequer se adivinhe. Sentada na soleira da porta pressentia a estudantada que a seguir iria virar a esquina, de capa e batina, a arrastar cervejas e sebentas pelas noites da cidade até à formatura. Via sempre mais à frente. Com proporções aumentadas. Via-os a cada um. Mais além, de forma incontrolável, monótona, repetitiva. Adivinhava-os depois dos estudos. A trabalharem nos escritórios rotineiros. Contando os dias para o fim do mês das contas por pagar a trás do balcão. A suspirarem pelas férias na Republica Dominicana de pulseira de tudo incluído a alarvar mojitos. Enganando-se, ano após ano, nas 12 passas de pedidos para que tudo permanecesse sempre igual. Via-os depois perder o entusiasmo pelas mulheres e a ligeireza de pantufas frente ao telejornal. Via tudo isso de forma convulsiva, mesmo trancando a porta, fechando os olhos e apagando as luzes. À menor pista, cheiro ou som, abria-se num ápice a indiscrição despida das vidas nuas. Sem apelo nem agravo, como se estivesse sempre a assistir ao grande cinema ao ar livre na Praça do Sertório, numa noite de Verão e a ver as cenas agigantadas de sonhos e a previsibilidade sem escapatória. Era assim desde o berço. Nada escapava ao seu sétimo - apurado, certeiro e sagaz - sentido de conhecer os homens. Nada lhe escapava. Até hoje. Noite de Lua Nova, 28 graus num Agosto quente como os outros, sentada, de facto, numa das últimas filas de cadeiras na Praça, à espera que começasse a projecção e a Alice no País das Maravilhas inundasse de som e luz todo o espaço. Ele veio e sentou-se a seu lado. Ela olhou-o de soslaio para o conhecer por dentro mas nada viu. Não conseguiu descortinar o que se passaria a seguir com aquele homem de olhar determinado e mãos compridas. Não lhe via o futuro. Não lhe adivinhava certezas desenhadas nas rugas, que a luz da rua fazia contrastar. Não penetrava nas histórias que lhe haviam de acontecer. Pela primeira vez nada via. Só um grande ecran em branco iluminado. Olhou então para ele e encheu-se com os cinco sentidos da surpresa numa excitação pueril do simplesmente fantástico. Abandonou-se no vazio permonitório e com o que lhe restava do seu sexto sentido, percebeu ali, sorrindo enquanto a Alice se deixava escorregar pela toca do coelho, que com ele nunca nada iria conseguir adivinhar. Ela e ele eram um filme em que tudo estava ainda por dizer.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Largo Mário Chicó

Pedes-me que te escreva palavras azuis. Podias pedi-las em vermelho, em verde oliva, amarelo limão, em branco. Facilitavas-me a vida. - Não! Escreve-me com palavras azuis.
Precisei esperar que o cinzento carregasse o céu, para que as pudesse ver todas. Em sobressalto. Anunciadas por trovões ao longe na improbabilidade de um recanto escuro do jardim do chá, na casa nobre atrás da Sé. Já há dias as tinha procurado fora das muralhas, a olhar para a planície árida, mas a secura do pó em remoinhos ocre não deixou que se escrevessem na paisagem. Procurei-as à noite, no chão pisado das ruas mas a miopia das pedras escondeu-as. Estava demasiado escuro para aparecerem, Esperei por elas, de olhos fechados em silêncio. Não vieram. Encontrei-as hoje por fim, desenhadas pelo punho de pintora em palavras multicor, num legado feito de telas repartidas. -Um azul cerúleo para voar alto. Um azul cobalto para a felicidade. Um azul ultramarino para estimular o espírito. São estas as palavras, azuis, que me pediste. E é na tela alheia que tas dou, onde me foram oferecidas sem eu ter dado conta. São tuas agora. Faz delas o que quiseres.

(Palavras azuis por Maria Helena Vieira da Silva, para serem desfrutadas em texto aqui)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Rua de Olivença

Esperava pacientemente a chegada do correio. Era o melhor do dia. Gostava de tudo o que vinha fechado a cola e com remetente ao canto. Não importava o que lá viesse. Abrir a gume os envelopes revelava-se o mesmo prazer que rasgar com os dedos caixa de surpresas, presentes de natal ou festas. Não era o acto em si, mas a o facto de ser ele o destinatário. A constatação inequívoca de existir. De importar. Não se lembrava quando tinha começado essa coisa de ser só sombra. O momento em que começou a vaguear pelas ruas a procurar encontrões que lhe provassem que ainda era gente. Era ténue a recordação do momento em que começara a passar despercebido. Talvez ainda no liceu, onde o seu nome já só era dito em voz alta nas chamadas para os exames. Orfão de gente. Talvez mais tarde, depois da reforma. Agora estava definitivamente incógnito, como se fosse só um movimento que não se vê, uma sensação leve de presença que não importa. Dizia poucas palavras ditas. Era uma ida ao café, um pedir de conta, um desculpe, um faz-favor. Discursava em monossílabos por falta de interlocutor com quem dialogar. Quando chegava o carteiro tinha o seu momento. Ficava atrás da porta é espera que elas caíssem pela caixa-de-correio, buraco na porta da frente. Espalhavam-se no chão e demorava a apanhá-lhas. Uma por uma mirava-as de alto a baixo e imaginava o que lá viria. Havia dias em que lhe chegavam três ou quatro. Manuseava com cuidado. Revirava. Olhava com atenção o seu nome escrito. Destacado. E quando tinha a certeza que era mesmo para si, fazia deslizar a lâmina do abre-cartas pelo vinco do envelope, mordendo os lábios. Homem-destinatário que se fazia sócio de todos os clubes, de todas as causas, de mil-cartões de fidelização, só para se continuar a sentir pessoa. Hoje, finalmente, chegou o envelope que esperava há anos. Percebeu imediatamente quando o viu cair no ladrilho da entrada. O seu vínculo à existência não precisava mais de ser lambido na goma dos selos que lhe mandavam. Vinha sem remetente nem aviso de recepção. Uma carta do além.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Rua das Donzellas

Era Verão, tarde. Descias a rua com a tua elegância vestida, uma alça descaída, o vestido rosa pálido abotoado até abaixo excepto no último botão, e tu morena pintada de propósito para seres bonita. Debaixo do braço, uma pasta deixava ver umas folhas fugidias e apetecia avisar-te que iriam cair. Tu sacudias o corpo numa dança de passos que mal tocavam o chão. Eram sete horas mas estava ainda calor. Sentaste-te na esplanada para tomar um chá frio. Eu ia seguindo-te ao longe e não era só com o olhar. Entre nós dois esteve sempre ele. Aproximei-me de ti e senti um empurrão invisível. Não notaste. Agarraste nas folhas em letras tricotadas à mão. Caiu um papel e usei o pretexto para te abordar. Mas o som das minhas palavras não se fazia ouvir. Esforcei a voz, os lábios mexiam mas eu parvo e pasmo nem uma palavra dizia. Acerquei-me do personagem, furioso. Mas ele era imaterial, fantasma. Usei então o teu papel e escrevi. Perguntei, atrevido e só, se podia fazer-te companhia. Coçaste a orelha, ajeitaste os cabelos com uma leveza incrível, donzela do ar. Tricotaste uma resposta de sim. Na condição de que eu afastasse o ocaso dali. Fiz-me enorme, presente. Vertical. Apostei no momento, sovei o vento. Ficou sempre Sol, sem tempo, entre mim e ti. E tu viste-me e ouviste-me tal e qual o fazes agora. Donzela do ar, hoje, em nós só hoje, pela rua fora.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Travessa de Beatriz Vilhena

Beatriz Vilhena olhou-o no fundo do olho, perscrutando no dilatar da sua única pupila assustada se ele estava ou não a dizer a verdade. Não era mulher de se ficar sem explicações. Sentia a léguas o cheiro a esturro e não se lembrava de ter deixado nada ao lume. Ele era uma criatura imponente, mas aquela mulher, metia-lhe respeito. Quando o olhava assim, mãos na anca, fixada nos seus mais ínfimos movimentos, sentia um frio a descer-lhe pela espinha e logo ficava indefeso e nu, pequenino de nascença, sem eira nem beira, numa angustia que não conseguia explicar. E desta vez era a doer. O inquérito mal tinha começado e já ele procurava algum buraco para se enfiar. Até hoje nunca tinha percebido a coisa. Beatriz não lhe dirigia palavra. Os pontos de interrogação apareciam-lhe à frente, agigantados, como anzóis ao contrário a exigirem-lhe que os mordesse. E ele, boca aberta, mudo, deixava de ser bicharrão e voltava a babar-se em desculpas, a esperar açoites e colo no final. Beatriz Vilhena tinha-o assim, dominado, amansado e submisso desde aquele dia em que numa briga de valentes ele perdeu o olho esquerdo e por um triz, não se esvaiu desta para melhor. Beatriz levou-o para casa. Tratou-lhe das feridas. Trouxe-o de novo à vida e deu-lhe um tecto. Ele rendeu-se aí mesmo. Trela posta. Fiel. Satisfeito. Disse-lhe que podia tudo, menos tocar nas galinhas. Isso é que nunca. Hoje desgraçou-se. Não conseguiu mais resistir à tentação e depenou uma. Apanhou-a a jeito, foi-lhe ao pescoço e comeu-a. Não havia como esconder esse infortúnio de carne que se abatera para sempre. Beatriz Vilhena sabia que isso um dia iria acontecer. Por isso, há muitos anos atrás quando o salvou, deu-lhe um nome. O Cão. Pirata.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Beco da Espinhosa


Está escuro. Nove da noite e tu não chegas. Gostava que viesses para casa, são horas de descansar. Mas tu não queres vir, que não descansas, não sabes. Relaxar, repousar, descontrair é acção, julgas que não? Mas é um dom que esqueceste, já não consegues, não tens…
Há anos ensinei-te. Íamos para a quinta ao final do dia e tu passeavas descalça, um par de sapatos numa mão, a outra agarrando a minha. Lambias aquela pausa que te sabia a uma porção de coisas. Era o paladar da vida ao gosto do tempo. Cada pedaço um dia inteiro e nós vivíamos assim dez vezes mais do que qualquer um. Uma pegada na terra e era uma manhã desdobrada, uma gargalhada solta momentos duma tarde sem fim; uma corrida na relva e a noite voltava cumplice, bicho de conta ao nascer do sol.
Eras linda, rapariga. Só por que vivias. Sem espinhas nem delongas.

Vem-te embora. Larga essa lida, lambida, penosa. Beco sem saída se não fugires já. Anda, mulher, solta-te, avança. Deixa essas horas espinhosas e volta rapariguinha.

Rua do Muro

Abraças-me a cintura. Esvazias levemente os pensamentos no meu ombro enquanto me dizes até já. Descem-me pelo peito. Caem-me para o bolso onde se misturam com as chaves do meu mundo. Tento agarrá-los com a mão direita. Mas passam-me pelos dedos e escapam-se. Como tu. Escorregam. Livres. São teus de facto. Os pensamentos. Não são de se prender. Deixaste-os comigo enquanto foste dar a tua corrida à volta das muralhas. Livraste-te deles, por momentos, só para não ires tão carregado. Sinto agora a rugosidade das pedras a tocar-me, áspera, enquanto me encosto no muro e te vejo desaparecer ao longe em passo acelerado. Rasgo um sorriso por me dares a guardar os teus segredos sem pedires licença. Tento uma vez mais agarrá-los com vontade de entrar por ti adentro. Por fim consigo. Apanho um e passo de rompante para o fundo da tua mente. É a tua cabeça inteira na minha. A pensar como tu. A ver-me por fora o que eu não sei que sou por dentro. Extasio quando vejo o que tu sentes, neste estar assim a contrastar, macia, o muro que me arranha a pele. E fico neste embalo de te saber entregue a mim numa mistura ocupada de mistérios. Perco a noção de tempo na invasão de sentidos no lado de fora. Tu em mim. Eu de ti. Entronizada. Deste lado da muralha, a saber-me a dona do castelo. Contigo a colocar-me a tiara, o ceptro, o coração nas mãos. Desfaço-me na surpresa absoluta do que é saborear-me assim, por fora, numa imagem de mim alucinante. Rainha das copas. Baralho de cartas a revelar todo o futuro.
Passou-se o tempo. Apareces de súbito. De corpo inteiro. Sôfrego. Ofegante. Determinado a resgatar o que é teu. Trazes-me à terra. Devolves-me os meus olhos do presente. Sorrio-te com a cumplicidade cega de te conhecer agora por dentro. Ao fazê-lo, saem-me da cabeça os pensamentos e voltam para o bolso onde os deixaste. Encostas-te então a mim e com mãos e beijos sugas-me o que é teu teu e levas-me contigo ao outro lado das muralhas.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Travessa do Sertório

Cerrava os dentes por causa da dor. E não se lhe ouvia um grito. À sua frente passeavam paisagens de mar e sabores de sal que era o que sonhava para depois. Agora não era hora de sofrer. Pelo contrário sorria com doçura escutando-a. Queria sentir como ela os odores do amor. Mas era por ela que os sentia e ela falava do fulano que não iria nunca ser humano para ele. Era família. Sangue porque sim. O rancor não era verdadeiro era dor de amor. E Sertório trocava os nós pelos sarcasmos amigos de quem se felicita pela felicidade do outro em mentiras do coração. Mafalda descontendo a poesia da alma na palma das mãos que suadas lhe entregava de amizade antiga. Sertório nem guerreiro podia, era cruel em lutas de paixão e queria ganhar batalhas cerradas de chama e longo pavio. Mas esta guerra era desvitoriosa. E ele general em cavalo amuado. Sem a musa no peito de si.

Publicada por RSG

domingo, 4 de abril de 2010

Rua da Graça

Não pediste licença. Arrastaste ruidosamente a cadeira livre da minha mesa da esplanada para te anunciares, circo-homem-bomba chegado à terra. Depois sentaste-te, familiar, como se aquele lugar te pertencesse desde sempre. Não te estranhei. Limitei-me a dar-te as boas-vindas por cima dos óculos, enquanto fechava as notícias da semana e as colocava ao lado da chávena já bebida. Costume de sábado de manhã, dois botões de camisa aberta e barba por fazer a roçar as gordas com pouco interesse. Sorriste, enquanto te ajustavas um pouco na direcção do sol, para que a luz te entrasse pelo pescoço em golfadas engolidas para o meio de ti. Via-se que estavas há muito à espera do gozo desses raios com horas extra, a garantir dias de esplanada e risos. Trazias tatuada no rubor das faces uma vontade exagerada de sentir. Não te estranhei sôfrega. Soube de imediato quem tu eras, quando te enrolaste na mortalha do cigarro e me levaste contigo o pensamento num fumo sinuoso. Depois, com as pernas cruzadas e saia cigana, abriste a tua curiosidade gaiata numa entrega instantânea, no dia da chegada. Não é para todos essa convicção. Observei-te enquanto gesticulavas as tuas aventuras. Sorri, de soslaio, aos teus desvarios. Atento à próxima história. Disse-te coisas de mim. Depois, num malabarismo de habilidades de mulher de circo, pegaste em mim e leste-me as mãos. Franziste o sobrolho, enquanto eu te engolia o fogo, e deixaste escapar por entre os dentes uma qualquer fatalidade impronunciável de linhas cruzadas. Endireitaste as costas e, hirta, afirmaste a tua autoridade de pitonisa de trazer-por-casa. Futuro assim. Passado outro. Longa esta linha. Sensual esta aqui. Filhos. Infortúnio. Dinheiro. Sucesso e morte. Tudo. Depois riste-te, levaste o polegar ao queixo e depuseste o indicador sobre os lábios. Pensativa. Imperturbável. Entendi-te num ápice. Destino marcado a pele e carne. Era o teu nome inteiro que vias na palma da minha mão. Maria. Cheia de Graça.

sábado, 13 de março de 2010

Travessa da Harpa

Demasiado séria para se brincar. Triangular, de cordas todas desiguais, no comprimento. Não na tensão, nem na espessura, que lhe dão a gravidade.

Toca-se com as duas mãos. Sente-se em todo o corpo. Conhecida desde a Alta Antiguidade. Dissimulada. Soa maviosa e é, além de flagelo, desgraça. Quando toca aos mais pequenos, nada mais pungente.

Não se lhe conhece outra rua. Jamais é homenageada. Harpa, além do óbvio, fome em alentejano.

sábado, 6 de março de 2010

Travessa das Anjinhas

Abriu a porta do quarto mais recuado da casa grande da travessa. Era lá que se guardava. A parte de fora de si, claro. A outra, essa não a largava nunca, permanente, no bater cadenciado de cada pulsar do coração. A de dentro era a essência que lhe permitia respirar a finitude de ter pele e poder sentir-se, carne, osso, vida. Às vezes precisava de se mudar por fora. Ou porque se tinha simplesmente fartado de assim ser, ou porque lhe aparecera um rasgão súbito que lhe trazia a urgência de ser outra. Ou só pelo gozo de se experimentar diferente. Mudava porque era chegada a hora, não havia necessidade de mais explicações. Avançou pelo quarto, closet de carapaça e epiderme, e olhou para as roupas de si ordeiramente penduradas. Havia-as de todos os feitios. Sérias. Sonhadoras. Determinadas. Amigas. Criminosas. Sensuais. Desleixadas. De várias cores. Rubras de paixão. Verdes de cansaço. Pretas de vergonha. Agora só tinha de escolher. Sentou-se num gesto de contemplação e surpresa perante a infinitude de possibilidadades. Respirou-se. Sentiu o ar da vida a sair-lhe. A entrar-lhe numa súplica de experiência. Levantou-se determinada e vestiu-se de longas asas brancas.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Travessa Maria de Alter

Um metro e sessenta e dois. Bem conformada. Redonda onde tinha de ser. Pernas bem feitas, andava graciosa e ampla. Cabelo negro, forte e ligeiramente ondulado, quando o deixava crescer e não o entrançava. Morena, sedosa, forte de frentes. Bem alinhada e perfeitamente aprumada. Pescoço elegante e uma cabeça absolutamente proporcionada. Olhos castanhos, umas ventas – perdoem a crueza – a lembrar a grande Silvana Mangano.

Era a grande mãe de Alter. Por isso lhe chamaram Maria.

terça-feira, 2 de março de 2010

Travessa do Açacal

João Vago era seu nome. Lembrava-se vagamente dos seus clientes. Naquela profissão não eram permitidas descrições precisas dos fregueses. Homem de poucas falas, mais valia prevenir, o que não tinha remédio depois de feito. Mais vale, língua presa que dependurada. Pela sua casa passava toda a sorte de gente. Do respeitabilíssimo oficial de cavalaria, ao salteador de caminhos, passando pelo castrador de animais, todos queriam que o Vago lhes afagasse os metais.

Hoje, o açacal deu lugar a um minimercado. As lâminas são todas descartáveis. O polidor de armas brancas – o açacalador – já lá não está e o mais parecido é o amolador ambulante que – dizem – agoira chuvas com a sua gaita. Arranja mais varetas do que afia facas. Não ganha para acompanhar um cego.

A descartabilidade está na moda, há demasiado tempo. Nem as barbas se fazem; e quando as fazem, não usam navalha. Ninguém faz açacaladuras, nem sequer vagamente. Será um problema de afectos?

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Travessa da Bota

Estava frio. Os três saltitavam de assunto em assunto, sem esperar pelo diálogo. As palavras guiavam-nos para fora dali. Nascia um dia de Sol o que estava a ser raro naquele Inverno severo, diluviano, inacabável. Sentiam-se libertos e renovados. Jonas parou de repente. Acharam que ele se tinha esquecido de alguma coisa. Mas não. Era a bota. Enterrada na lama por distracção. Bem enterrada que a lama era muita. E espessa. Ao tentar retirá-la saiu o pé, descalço. Com a meia, ridícula, às riscas. Desequilibrou-se…pé no chão, enlameado. Uma risota à sua volta vinda não só dos amigos como dos outros passeantes. Jonas não se decidia. Iria rir ou praguejar? Já não era uma meia aquilo que calçava, era um pedaço de lama colado ao final da perna. E estava com esse novo prolongamento de si, hirto, esticado, quase paralelo ao chão, quando “clik” um japonês dispara uma fotografia. “Bom. Muito engraçada. Por favor, toma meu cartão. Exibição proxima mês Tokyo. Photos. Três todos invitados.”. É simpático da tua parte, amigo, e qual será o título: Évora, o lugar onde Judas perdeu as botas? Não! Mas sorriu, impávido. Obrigado, é muito simpático...Quer...? por favor esteja à vontade…E fez tantas tantas poses quantas lhe foram pedidas. Desenterrou finalmente a bota com a mão, calçou-a, mesmo assim, imunda. E juntaram-se aos dois japoneses para um almoço que se tornou animado. Trocaram os ditos cartões de visita. Estavam quase amigos. Naquilo em que a bebida aproxima. Jonas nesse momento já lamentava, para si: é uma pena, só me fotografaram a perna...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Travessa da Lança e Dardo

Costumava primeiro desenrolar, vagarosamente, o novelo libertário que tinha no bolso, outrora as fronteiras de si. Esticava-o ao longo do espaço novo, por descobrir. Por vezes desenhava filas paralelas, a fazer de conta serem carris de comboio por onde passariam as pessoas apressadas mais as suas ideias banais. Deixava que viessem. Arquitectava então modelos em que primeiro esticava, sem cálculos de estrutura e outros rigores de género, as linhas até se fazerem as palavras. Moldava-as. Modelava. Outras vezes eram as palavras que se faziam a si. E o transformavam. Fosse como fosse, para Rafael era sempre um prazer esticar as suas linhas, uma após outra, transmutando poliedros e círculos para desenhar sintagmas e depois metê-los, onde livres, lhes apetecesse ficar. Esta era a maneira que conhecia de fazer textos redondos, acutilantes, ageis, anquilosados, esdrúxulos. de todas as formas, propósitos e feitios. Hoje não seria assim. As linhas trazia-as enroladas na garganta. Desta vez não iriam para o papel. Clamavam rasgo. Levou-as para a forja. Depois ao rubro, na marreta e na bigorna tratou do resto. Fez delas ferro pontiagudo. Lança e Dardo. Com eles escreverá a sangue a raiva o que nenhuma palavra pode contar.

Rua da Alcárcova de Baixo

A soleira da minha porta é um cais à frente de um farol. Os degraus descem para o leito feito de pedra negra que reluz. Não dá para a foz do rio mas é como se desse. Passam por lá pessoas e não navios. Para o caso tanto faz. Navegam. Derivam. Pouco importa. Habituei-me a ouvir no sino da Sé um apitar de navios a sair a barra. Toda a noite. Adivinho-lhes as rotas. Aquele vai hoje para as Américas. São 18 dias até chegar. Aqueloutro ruma a Luanda. Há-de fazer viagem na esteira das caravelas. Numa repetição eterna de correntes assisto, impávido na dormência delirante de noites longas, ao ondular das vidas que se faz sobre espuma e sal. Gentes-barco que se fazem à aventura chapinhando nestas ruas ermas sem sentido. Hoje, da minha vigia assisto, petrificado de surpresa, ao espectaculo das águas que galopam, numa fúria de inverno adiantado, a reclamar o que é seu. É noite de borrasca.Tempestade sem gaivotas. Águas a rugir na alcárcova levando tudo à frente numa revolta a repique no sino maior. É hoje que chegam os navios. É hoje que partem finalmente.

Pátio do Salema

Salema é claramente, apelido. Mas também é cumprimento. Uma saudação. Se entre turcos, um salamaleque. Se amaneirado, também. Curiosamente, um cumprimento de um turco façanhudo, daqueles de farta bigodaça negra ou de um andrógino tem o mesmo nome.

O primeiro, afectado pelo excesso de virilidade que aparenta; o segundo, propriamente dito, afectado. Lá no Pátio, não morava nenhum turco. O mais parecido, o Janica; pelo bigode e jeitão para cantar. A sua conversada, a Salomé, de avó marroquina, morava perto, no Beco da Espinhosa. Ora de quem se abespinha, não se devem esperar salamaleques e uma salema ainda vá, mas só nos quinze de dias de Agosto, quando vão todos a banhos para Porto Covo e, as assam no braseiro.

Salamaleque fazia o Salema à vizinha do r/c Esq., sobrinha do alfaiate da Condessa – o Silva – que usava uns corpetes feitos por seu tio que lhe realçavam as redondezas. Quer no pátio onde vivia, quer no outro, das redondezas, a Praça do Giraldo. Aí, giralmente, passeava nas estivais noites de calma. Porque um pátio é uma praça mais pequena. Sem direito a estátua, pelourinho ou fonte. Com direito, isso sim, a cantigas. Que o diga o Janica da Salomé!

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Travessa das Casas Pintadas

Era Mozart. Era aquele concerto para piano que te transformava as mãos em bailarinas de construções. Em nada barrocas. Antes limpas, misérias de exageros, linhas para nós continuarmos, que nos sublimam aos olhos. Pouco te falavam as cores. Casas pintadas são favas contadas, rias-te. É a não-cor que te reflecte. Ausência de paleta excepto no azul. Cor de ti. Como o mar, extenso e irrequieto. Mutável. Belo. Que nos inspira com os seus ritmos grandiosos tal Nº20, em teclas mágicas. Mozart em Romanze para todos. E para ti que não és de ninguém. Porque és de tantos. Dedos curtos a desenhar alamedas de génio. Com as casas pintadas sem cores, que não necessitam. Basta olhá-las. Basta. Que se gosta.

Travessa do Pão Bolorento


Lá no fundo de um baú qualquer tenho deixado, na conveniência das bolas de naftalina e jornais antigos, as minhas frases mais certas. Dobro-as com toda a paciência e escrevo no verso, com caligrafia de avó, uma data. Alguém miúdo as descobrirá um dia em sobressalto, no meio de fotografias gastas e bilhetes de espectáculos de gente antiga. Adivinho-lhe um sorriso gaiato a despontar na cara. Excitação de tesouro de laçarote. Boca aberta quando, depois da surpresa ao colo, se sentar de pernas cruzadas encostado à parede do sotão a mastigar o que se esconde em todas elas. Comecei a passar-me toda para papel, quando há um ano me assolou um medo que se me gastem as palavras. Decidi então que as iria poupar, para que as não levasse o vento, e comecei a encaixotá-las a todas. Vesti-me então de idade e assumi-me velha no esquecimento à tarde da conversa da manhã. Aceitaram-me assim. Deixaram-me em paz na minha repetição e na vulgaridade do desinteresse de comentar na rua o tempo que faz e vai fazer. Reservei-me, falando quase só em monossílabos. e assim fiquei inteiramentemente disponível para a memória das minhas importâncias. Escrevi-as quase todas. Escudada pela senilidade aparente de meias trocadas de duas cores. Hoje acordei ao avesso e decidida do contrário. Com a vontade de abdicar das minhas certezas. Que pão pode deixar sementes? Que pão bolorento pode saciar fomes futuras? Subo até ao sotão. Desembrulho-me em todas as palavras que guardei e mato a fome com a frescura do pão vivo que fiz para mim. Hoje decidi-me a aceitar para os outros o incerto. Vou deixar o baú vazio das minhas convicções para que o gaiato de amanhã lá possa guardar as suas sementes. O pão da vida.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Rua do Alfaiate da Condessa

Quando lhes queria prender a atenção, zás: “era uma vez um botão assassino”. Funcionava melhor que a história do “fecho éclair estrangulador” ou a do “velcro escalpelizador”. Esta história de índios pós-far-west, adaptava-se como uma luva quando o tema das histórias era o futebol e se dedicavam, com imagens vídeo, a escalpelizar os jogos da jornada anterior. Além de gerar algum burburinho, fruto das preferências clubistas, as meninas sentiam-se menos atraídas, de alguma forma discriminadas.

Elas preferiam a história do “fecho éclair estrangulador”. Mas aqui os meninos, sempre apreciadores de decotes, queriam era corrê-los. Ao contrário. No sentido inverso da falta de ar. O resultado, como se pode imaginar, pouco brilhante, gerando uma vez que outra, alguma falta de decoro, pois algumas meninas achavam graça à brincadeira.

A nossa contadora de histórias tinha tentado tudo. Desde o clássico “Capuchinho Vermelho”, já surrado de tanto uso que mais parecia, centenária gorra republicana; passando pelas versões da mesma história, onde estavam proibidas a utilização de vogais, ou de palavras, que produziam efeitos fantásticos na acção, desaparecendo, por exemplo, o lobo quando os Ós estavam vedados. De facto, quando esta vogal é mais verdadeira ou seria U. Porém, o que calava na audiência era, o botão.

Ele, em si, não fazia mal nenhum. Aliás, sem ser em série 007, com toda aquela parafernália tecnológica, nenhum botão comete homicídio. O problema é o tamanho das camisas. Aquele botão, estrategicamente colocado, estabelece a fronteira entre uma apertada ou desapertada. A Condessa gostava delas como só o Silva lhas sabia moldar. O seu alfaiate, Felício da Silva, deixava-as de forma que o botão adquiria uma vontade irreprimível de deixar de cumprir a sua função. Tornava-se – justamente – decisivo no ânimo do Conde. Enciumado, um potencial assassino de vítimas alegres. Enfim, os homens não são de ferro!

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Travessa da Pulga


Ele. Estás nas minhas mãos há semanas. Quase terminada. Só mais uns retoques. Limar-te aqui o seio. Polir-te as madeixas. Repuxar os olhos abrindo um pouco mais a sobrancelha. Aprofundar-te a curvatura do pescoço, ali à direita. Acertar a geometria da clavícula para que se reforce o porte altivo. Não tarda o teu coração vai bater. Sinto-te real. Mais real do que tu aí à minha frente, que te emprestas, diligente, para me servir de rascunho à criação...
Ela. E eu vejo-te olhar para cada milímetro do meu tronco nu há mais de um mês e tenho esta estranha sensação de ser eu o objecto e não a pedra tosca em que já moldaste as minhas formas. Há semanas que aqui chego pontualmente às 9. Sento-me na cadeira das costas baixas, no centro deste estrado, numa sala coberta de pó branco que me entra pelo nariz. Descubro os ombros. Destapo os seios quando me pedes. Sigo-te sempre os gestos quando pegas no cinzel. Raramente trocamos palavras...
Ele. Começaste por ser pedra tosca. Disforme. A reflectir esse esboço-vivo-ideia-real à minha frente chamada Ilda. Ilda Pulga. Estranho nome de criatura a baptizar a beleza roliça e cheia. Escolhi-a entre as mais bonitas para que tu saísses mais-que-perfeita. Pretérito transformado em futuro de pedra eterna. Anúncio no jornal. Um desfile de mulheres. Ruivas. Morenas. Altas. Com as vontades a despontarem dos decotes. Faces rosadas a adivinhar-me o desejo escondido atrás do meu olho de escultor-artista...
Ela. Gostei da forma como reparaste em mim madura e me fizeste sentir pela primeira vez mulher. Quis-te naquele momento todo para mim...
Ele. Já tinha escolhido o mármore mais imaculado. Alvo e sem veios, para poder ser eu, imperturbável, a criar cada linha-contorno à força do meu desejo. Quando te pedi, Ilda, para tirares o casaco soube de imediato que iria sorver cada pedaço teu e forrar com a tua pele uma vida eterna...
Ela. Vi-te ensandecer de desejo, não por mim, mas pelo que te saía pelas mãos. Autista da beleza da mulher pulsante, escravo em fixação mórbida pela pedra mármore. De nada serviu a minha lascívia, a minha vontade hirta de bicos rosados. De nada serviu a luz do meio-dia que me lambia o tronco nu a clamar por ti...
Ele. Há semanas que só tenho olhos para ti. Festejei cada conquista do cinzel a tirar-te o que estava a mais, num prazer indescritível de te recriar a escopo. Madeixas a cair do cabelo apanhado. O decote fogoso. O lenço a envolver-te a cintura esguia. Vontades feitas formas. Até chegar aqui. Ao momento em que um só sopro te podia fazer viver...
Ela. Perdi-te. Ficaste com o que menos me interessava. A forma. A minha forma de empréstimo a moldar os reflexos da luz na pedra branca. O que menos me interessava. Quando era a minha alma toda que te queria ter dado...
Ele. Acabo o último polimento. Obra acabada. Alivio. Olho-te pela ultima vez, Ilda, e sorrio porque te consegui trazer inteira para ela. Agora sim, viverás. Viverás eternamente.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Travessa das Morenas

Eras tão pequenina e já te olhavas ao espelho, desconsolada. Fechavas a mão e com o punho puxavas-lhe o brilho para observares através. Mas só lá estavas tu no que não querias. Desejavas muito ver outra imagem defronte de ti. Afastavas-te ofendida com mil quaresmas no peito. Obrigaste-te assim, desde miúda a não existires com rosto. E da mesma forma cresceste sem dares por ti. Valia-te a força e a graça dos que nascem furiosos. Eras apaixonada como corrente de rio sem margens. Não te davas conta das braçadas que davas. Os adultos só tinham voz nos olhos para gabar o Sol. O oposto a ti que eras Lua. E tu ouvia-os, encharcada. Se calhar eram estúpidos os elogios às louras que te rodeavam. Mas não eram para te esmagar, moreninha. Eles apenas á tua frente, gabando os caracóis dourados das criancinhas vistosas; ignorantes de ti e das fêmeas que nascem de espelho na mão e reflexos no coração. Tu atenta a disfarçar que existias noutra cor. Refugiada atrás da fantasia, sonhando ser tom de sol. Eras tão pequenina para essa tensão com os murmurios desatentos. Se tu soubesses então, como em nada interessam os embrulhos humanos...Para quê tanta cólica de cores a descarnar, morena tonta! Hoje ris-te da miserabilidade do que sentias. E é agora a vez da tua filha perceber o que pouco importa. És tu que a ensinas a caminhar corajosa, na riqueza da sabedoria e dos sentidos. Em verdade nua do que se é. Que bem basta que é tanto. Como tu fizeste por fim, orgulhosa agora. Briosa sempre. Rica de humores, eles que te salvaram. Morena bonita em espelho que revela a deusa poeta de ti.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Rua do Inverno

Devolves-me o aceno com um semi-sorriso de quem se esgotaram as últimas palavras. Ainda puxo por ti, a querer tirar-te da manga do casaco uma memória boa que te reluza nos olhos. Não consigo. Estendo-te então a mão e aceito conformado que te vais, enquanto assisto ao rasto do entardecer que deixas, quando atravessas a rua, só, para o lado dos jacarandás. Tiveste 7 anos como eu. 25 com filhos já na escola e a seguir os 40 dos primeiros netos. Depois a longa rotina até aparecer o reumático e aí o Outono, breve como as horas dos dias até mudar a estação. Estou cansado e sento-me à sombra rala da tília enquanto assisto ao teu dissipar trémulo, por baixo dos ramos nus das árvores, à procura do sentido. Vejo-te ao longe e confundo-te agora, retorcido rugoso e escuro, com as troncos que te rodeiam. Chegámos com eles ao Inverno, jacarandás sem folhas. Eles vão esperar pelas flores.

Travessa dos Mascarenhas

Nesta Travessa nasceu o Restaurante Fialho, em 1948. Ainda não como restaurante, antes como tasca. Depois, os frangos assados e os comensais – clientes avençados – muito em voga nos 60. Só depois, as obras tornaram-no no que é hoje. Foram os pais dos actuais proprietários, fundadores do que viria a tornar-se, em nossa opinião, o maior dinamizador do turismo eborense.

Quantas pessoas se deslocam a Évora, de propósito, para ir comer ao Fialho? Mais as que vão tratar da sua vida à capital de distrito e lá almoçam ou jantam. Quantos restaurantes existem à sombra do Fialho? Quantos restaurantes abriram de antigos colaboradores do Fialho? Quantos restaurantes se conhecem em Portugal que utilizam a fórmula da casa da Travessa dos Mascarenhas? Se pudessemos tudo quantificar, seriam centenas de postos de trabalho gerados directa e indirectamente. Fornecedores de equipamentos e matérias primas que quase tudo devem à familia Fialho.

Por tudo isto e pela felicidade que distribui a tantos clientes, dever-se-ia fazer uma estátua aos Mascarenhas da Travessa. Mas por um princípio de justiça elementar, mudar o nome à rua para, Travessa do Fialho!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Travessa do Bagulho

Eu que uso os dias com sofreguidão desta vez tropeço desajeitado
É o tempo que não se move!
Sou eu que me movo à volta do tempo.
Tique-taque nervoso que me perturba o sono.
Lupa de saudade.
Recolho de ti cada bago e embebedo-me nos calores que deixas.
Sinto os teus cheiros em cachos que guardo,
não sei se em semente se em obra acabada.
Só sei que me esbugalho e me introduzo nas páginas que levas aí.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Travessa Damas

Lá viveu a partir dos 25 anos, quando começou a trabalhar, recém-saído da Faculdade. Tinha andado em Letras, não sabia se por vocação se de tanto ouvir, “em Germânicas andam as miúdas mais giras de Lisboa”. Por ele, que fazia os exercícios do Palma Fernandes com uma perna às costas, era indiferente, Letras ou Ciências. Mas se no Técnico “só havia gajos”, não era de arriscar. Sempre fora muito ponderado.

Alto e bem apessoado. Os jogos de tabuleiro eram a sua paixão. As damas a sua perdição. O xadrez nunca foi o seu forte. O gamão, à mercê do capricho dos dados, jamais o seduziu. Caprichos e sedução, antes o das damas.

Quando viu o anúncio no jornal, “T2 com pequeno jardim. Trav. Damas, s/n”, não pestanejou. Isso é de meninas.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Travessa das Gatas


Chama-se Gama. Assim, sem primeiro nome nem outros atributos que lhe façam figura. Gama simplesmente. Foi baptizado na memória do jardim, onde a sua dona pela primeira vez sentiu os estragos que um raio de sol pode fazer. Tudo aconteceu numa manhã solarenga de Outono. A luz enchia cristalina o céu e escorregava leve pela copa das árvores para depois deslizar pela estátua triunfal do navegador. Era imponente aquela figura de barba farta a segurar a âncora da conquista, num domínio absoluto de esfera-armilar a coroar a espada da submissão. Catarina teria aí uns 26 anos e movia-se com a paixão de andar de lentes apontadas, à espera que a sombras certas a deixassem gravar na Hasselblade o espírito das coisas sem alma.
Desde que lhe tinham oferecido a sua primeira câmara nunca tinha deixado que lhe entrasse pelo diafragma coisa alguma que aparentasse estar viva. Ficava-se pelas inanimadas. Monumentos. Prédios. Pontes. Contentores. Bermas de estrada. Por vezes folhas. Mortas. Era assim desde o dia, em que ainda criança, alguém lhe contou que na Índia se acreditava que a alma era capturada sempre que se fotografava de frente o rosto de uma pessoa. Isso mesmo. Um disparo e o espírito voava direitinho para os sais de prata e ficava para sempre aprisionado numa gaiola em seis por seis. Aquela revelação tinha-a impressionado e desde então nunca se atrevera a ser cúmplice de tamanha desumanidade. Optou pela missão contrária. Em vez de sonegar iria dar vida ao que nunca tinha tido alma que se soubesse. Desde então diariamente procurava obstinada os indícios certos na incidência da luz da manhã, quando as coisas ainda não carregam nada que não lhes pertença. Carregava a tiracolo a paciência das grandes convicções e ficava dias à espera do momento da luz certeira romper o obturador. A seguir ao disparo só sossegava no quarto escuro da casa da Travessa, até preceber se havia ou não essência de ser a clamar vida. Sabia-o de imediato quando as primeiras imagens turvas lhe pediam socorro no fundo do tanque por entre a ténue luz avermelhada. Era um momento fantástico que acontecia raramente. Ficava deslumbrada. Ofegante. A assistir aquele espectáculo único de criar vida a partir do nada. Depois da revelação sentia no seu âmago o apelo de a poder invocar para além da película e do papel. Adoptava então mais uma gata vadia e chamava-lhe o nome da alma acabada de nascer. Já ia em 18 as que se espreguiçavam sorrateiras empoleiradas nos muros do quintal. Havia-as de todos os feitios. Riscadas, pretas. brancas, macias, assanhadas. Havia-as de todos os nomes. Moura, Misericórdia, Aviz, Diana. Todas impenetráveis. Todas vivas.

Naquela manhã andava à procura da melhor maneira de fazer viver aquela estátua. Estava há já dois dias determinada a levá-la para casa. Esperava de lentes apontadas que a luz deslizasse até à base dos degraus para captar o contraste exacto daquela alma-mármore. Era uma vez mais um trabalho de paciência. O momento estava a chegar. Catarina sentia o clamor na ponta dos dedos e no exacto momento em que se preparava para um disparar certeiro, um raio de luz encadeou-a e, sem querer, premiu o botão até ao fim. Não entendeu de imediato o que se passou, mas bastaram uns segundos para ver aquele corpo de homem imóvel caído aos pés da estátua. Tinha-se metido na objectiva e ela sem querer fotografou-o. Agora nada havia a fazer, uma alma só se apanha uma vez.
Chamou-lhe Gama. Agora é um belo gato malhado, de pelo longo e olhos perturbadoramente verdes que gosta de festas e de se roçar altivo pelas pernas de quem passa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Rua do Calvário

Carminda subia a escada em grande correria. Não é que estivesse fresca e cheia de vivacidade, mas tinha uma urgência enorme em chegar a casa. Subia os degraus dois a dois. Vivia no 3º andar, o último, que as casas no bairro não são muito altas. Prédio antigo de escadas empinadas, Carminda carregava às costas uma enorme dor de cabeça que transportava juntamente com a ansiedade. Abriu a porta tremendo de vontade, ou, talvez até, de pavor, ou de arrepio.
Largou a pasta de trabalho, correu ao quarto no fundo do longo corredor, descalçou-se, enfiou as pantufas de carneira e voou à cozinha para um relaxante chá de menta. Caneca às flores que a Tia Rosa oferecera no Natal, um pratinho de biscoitos que trouxera do Sr. Gaspar que além de carne vendia doçarias e legumes, pousou tudo em cima da mesa em frente ao sofá. Apercebeu-se de que se esquecera de tirar o casaco que despiu não tendo já coragem de o ir pendurar ao bengaleiro da entrada; atirou-o para a cadeira estofada do canto.
Neste momento teve de parar um pouco, pobre Carminda, que aquilo era uma aflição todos os finais de tarde em dia de leituras novas; ia começar o calvário.
Diante da estante percorria com os seus olhos gulosos a risca de cores desalinhadas. Enquanto em goles pequenos o chá lhe ia suavizando as dores de cabeça com que acordara, amortizando um pouco os músculos, a contracção, a nervoseira. As lombadas aguardavam-na, com pose de senhoras finas. Embora prontas para a briga. Eram inúmeras, variadas, quase todas coabitando, ali espartilhadas, desde o tempo do seu pai que como ela passara horas de alheamento absoluto a velejar naquele fabuloso oceano de letras.
Carminda suspirou com o corpo todo. Percorreu de olhos fechados os pés, as canelas, as pernas, distraiu-se um pouco na zona do umbigo, do ventre, e voltou a fechar os olhos que só abriu depois de completo o exercicio de relaxamento. Descontraiu o pescoço, rodou os ombros em desenhos circulares, para cima, para baixo, sacudiu as mãos, desfez-se, o melhor que soube, do manto de tensão.

De costas viradas, lombada azul, ferro em ouro com letras bonitas gravadas por mãos que já não há, lá estava ele. O livro escolhido para começar nesse dia. Aproximou-se da prateleira, levantou a mão muito devagarinho, vai a retirá-lo do seu lugar e zás!! era sempre aquilo!
De cada vez que Carminda ia buscar um livro "novo" havia sarilho. O livro não queria ser incomodado, escapava-se-lhe. Recolhia-se atrás dos companheiros, corria, em tropelia, por trás deles, escapando à mão que o queria alcançar. Carminda abraçava, braços esticados, os livros descompostos agora; alguns caíam desequilibrados para o chão, outros tombavam sem o encosto do lado, e o livro escolhido agredia-a com mau génio atirando-lhe à cara alguns parceiros de capa dura, chegando ao ponto de por vezes a ferir. Às tantas a estante despia-se e, nessa altura, começava o confronto final. Carminda conhecia este calvário de cor. Frente a frente, olhos nos olhos, abria as mãos devagarinho e num gesto repentino, zuca! agarrava em palmas o cobiçado foragido.

Extenuada sorria, sorria sózinha na sua sala enorme; sabia que acabava por vencer, sempre. Os seu livros tinham personalidade própria, ginete, mau feitio, e sentiam-se no direito de não ser incomodados. Ela adorava-os assim. Depois de domados, transformavam-se em dóceis amigos de partilha. E o calvário acabava. Carminda deliciava-se então em leitura sôfrega, sabendo que assim que a terminasse tudo começaria de novo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Travessa de Ana Vaz

Desde que se lembra de existir que sempre teve um fascínio por fardas e autoridade de botas-engraxadas. Provavelmente por causa do seu tetra-avô da Prússia, que lhe ficou de herança em tela, depois de se terem ido com as duas guerras todos os títulos, pergaminhos e anéis da família. O avô de Anna era um nobre como os demais, um homem de faces rosadas e longas patilhas em curvatura até ao farto bigode retorcido. Careca proeminente, sobrancelhas carregadas e papada real. Vestia uma casaca em azul-marinho engalanada a dourados, com uma corrente a cair-lhe do ombro esquerdo ligada à imensidão dos feitos heróicos, agarrados ao peito em forma de medalhas e outras comendas. Mãos postas, ar altivo e de olhos pequenos, brilhantes e vivos. Anna sempre achou que aquele avô a seguia para todo o lado. Onde quer que estivesse sentada, na imensa sala de jantar da avó Cornélia, os olhos daquele homem olhavam-na de frente. Andou que tempos a tentar deslindar aquele mistério de pressentir que não era de tela e tinta o avô que a olhava com tanta presença. Um dia sem ninguém dar por isso esgueirou-se e fechou a porta da sala sem fazer barulho. Assomou-me então ao aparador, que estava por baixo da pintura a encher a parede de história, pôs-se em bicos de pé para ficar o mais perto possível dele e olhou para cima. Aí, ao sentir aqueles olhos totalmente fixos nos seus, teve a certeza absoluta que por trás da corrente dourada sobre a farda azul, batia um coração.

A partir desse dia passou a guardar com ele os seus segredos. Sempre que podia voltava à casa de Belém e confessava longamente o que lhe ia na alma. O avô Segismundo, veio a saber muito mais tarde o seu nome, assistiu com uma atenção permanente ao desenrolar dos primeiros amores, dos primeiros trabalhos, dos sonhos e das viagens. Nunca a censurou. Mostrava uma compreensão sem limites do alto da sua parede e uma ternura que Anna não conseguia sentir em nenhum outro ser. Depois da avó Cornélia ter partido, Segismundo mudou-se para o apartamento dos seus pais. Anna continuou a visitá-lo sempre que regressava a Lisboa para lhe falar dos desamores e outros problemas da sua solidão executiva de saltos-altos e caviar em primeira-classe. Visitava-o já com os filhos crescidos e com o fim da carreira a mandá-la para o sossego da casa do Alentejo. Era esse avô o único homem que ela em toda a vida conseguiu olhar nos olhos e despir-se de si. Agora estava na sua sala da casa de Évora, rodeado como ela de memórias e outros livros. Fazia-lhe companhia ao serão e tinham longas conversas enquanto crepitava lentamente a lareira da sala grande da casa da Travessa. Ontem teve uma boa notícia. Segismundo revelou-lhe que a Aninhas, a sua neta mais nova, no último fim-de-semana de visita da família, esperou que todos se fossem embora, fechou atrás de si a porta da sala, pôs-se em bicos de pés, olhou-o nos olhos e chamou-lhe avô.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Rua Fria

Decididamente, ela não gostava do frio. O que para ele era uma triste frustração, não conseguia acompanhar-lhe o porquê. Havia tantas coisas para agradecer ao frio. Estava-lhe na pele aproveitá-las. O ar sempre limpo, os cheiros autênticos, as manhãs revigorantes, o passeio desafogado pelas ruas, as castanhas cantando estalidos, nas brasas… Ele consumia o frio como quem devora com gula o pitéu preferido, ou desfruta, grato, a dádiva dos cinco sentidos. O chocolate quente, espesso, os chás de mil sabores, as chávenas, a expelir fumos e aromas, que agarramos com ambas as mãos para abraçar o aquecimento brinde, a sopa que chega à mesa a escaldar por que arrefece depressa. A vontade de chegar a casa para a magia duma manta nas pernas num descanso escolhido a média luz, lareira acesa, o pensamento hipnotizado pelas formas inventadas no reboliço das chamas. Bailarinas caprichosas, lindas. O cheiro-bom das brasas ainda mornas no despertar de cada dia. E, lá fora, o ar gelado a desejar-nos saúde, a carregar-nos de bateria.

Ele queria-a tanto a seu lado para avivar os calores do frio.
Mas Sílvia fugia-lhe. Sempre tensa. Apertada nos músculos que a definhavam. Recolhida. Insonsa. Vergada sobre o seu próprio corpo como um bicho-de-conta. Queixosa e rabugenta.

Ele falava-lhe nas virtudes dos artesãos; das fábricas que produziam e das lojas que vendiam. Nos sobretudos, nos blusões, no gozo do barrete ou do boné de feltro, na samarra, nas botas de carneira forradas a pelo. E aqueles casacos fantásticos tricotados com lã virgem que até pica a pele? os cobertores de papa tecidos com lã churra de ovelhas que já quase não há, a cheirar a infância? As escamas no corpo das pessoas, cebolas humanas, chouriços de nariz vermelho de pingo a cair, os apuros só para descalçar a luva da mão direita em busca dum lenço perdido nos confins do bolso…cruzando com escárnio o vizinho, que escolhe lavar o pingo na manga. Coisas próprias de nós. Fruto de alternância em estações. Todas divertidas ou belas se assim o decidirmos; todas boas se sentarmos o coração à camilha de braseira.
Mas Sílvia, sempre reclamando o verão, a nudez, a luz, os banhos de sol, os prazeres da praia.

- Sai, sai minha querida, sai. Que não percebes nada. Não é o tempo que está frio. És tu que és Inverno em qualquer estação, a qualquer hora dos dias...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Rua dos Mercadores

Quem lá mora: bancários, funcionários superiores da Câmara e um ou outro dos serviços municipalizados e vogais da administração de empresas municipais. Vogais, não presidentes que esses foram para os Montes.

Tinha aberto a rua, a famosa família Imaginário. Antigos e muito repeitados comerciantes da terra. A seguir, tinha ido o boticário e ao mesmo tempo, os Realista, republicanos de gema. O bisavô do actual - comerciante de tudo a um euro - quis até mudar de apelido, a favor dos ventos da época.

Todos tinham começado pelas feiras. Até o boticário que antes era ervanário. Primeiro com uma mula, depois com uma parelha e depois com uma Transit, em segunda-mão. Ajoujadas, eram o grande avanço tecnológico dos 70 e tinham menos mão de obra que as mulas. Os Imaginário, por exemplo, tinham tanta estimação na sua que até lhe puseram nome - a Russa - em homenagem à primeira mula da casa. A furgoneta havia sido encarnada, em nova, mas estava tão surrada do sol que a cor só se conhecia debaixo da dobrinha do tejadilho.

Os mercadores de hoje, não moram na cidade. Foram para os arredores. Já não dão nome às ruas. Nem às carrinhas!

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Travessa dos Lagares

As pretas da Califórnia e as chilenas tinham-se para lá mudado há já uns anos. Moravam paredes meias com as Fragas da Casa Amarela. As Nevadilha, da serra de Jaen, snobs como ninguém, paravam só para cumprimentar as Manzanilha, verdes de inveja das Gordales, companhia inseparável daquelas que, em Sevilha, aparecem sempre juntas com os Finos de Jerez e as homónimas liquidas de Sanlucar.

As Espertas, apesar do nome, discretíssimas. As Galegas, mais numerosas e muito apreciadas pela qualidade das suas gentes, eram as rainhas da rua. Responsáveis pelos azeites mais finos e bem apaladados.

Nos Lagares, como no resto da cidade, mora quem se deixa moer, neste caso, as azeitonas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Largo da Porta de Moura


Tenho a convicção inabalável das pedras da calçada. Hão-de caber no seu sitio e fazer do preto o contraste da portugalidade rendilhada a maço, areia e água. Vejo os calceteiros no agacho do sol da tarde, com o lenço suado a sair do chapéu poeirento e penso nisto. Solidarizo-me depois com eles no arquear das costas a alombar com a jorna de fazer um sitio de se pisar. Olho de seguida para o amontoado das pedras brancas e pretas e sinto nos meus dedos calejados, a repetição ardente desta coisa de ser operário-artista a escrever com a dureza das palavras uma história onde se possa andar por cima.

Há quem faça fontes. Eu do mármore conto histórias. Letras. Sílabas. Palavras. Até que se encaixem em desenhos por onde saia água que me mate esta sede de escrever.
Há os que levantam catedrais com o granito para chegar a Deus. Eu com Ele faço rimas, à falta de melhor para chegar a mim.
Há ainda os que de escopo em riste escrevem epitáfios na lápide que encerra um tempo. Prefiro esculpir capítulos com a prosa quente da minha carne-viva.

Acerco-me do amontoado das pedras e pego numa. Com o polegar percorro a aresta rugosa. Sinto a irregularidade da forma enquanto os dedos se me enchem de pó. Ignoram-me os homens cabisbaixos de olhos postos na calçada por fazer, martelando a sua repetição. Ainda bem. Deles só quero a constatação da obra feita. Não quero palavras. Essas vejo-as no polimento do fontanário à minha frente a jorrar límpido em catadupas.

Subo os degraus até ao frescor da água. Olho para baixo e vejo-me ir ao fundo, ganhar volume e novas formas no ondulado circular da minha imagem. Refresco-me deste sol abrasador. Olho para o lado e vejo os calceteiros continuarem meticulosamente a ladear calhaus, agora irmanados em desenho geométrico. Dá-me uma vontade súbita de papel e caneta. Volto-me e já não vejo o monte de pedras. Vejo sim palavras para escrever. Agarro-as. Meto-as nos bolsos e sento-me ali mesmo a fazer delas coisa viva.