domingo, 4 de abril de 2010

Rua da Graça

Não pediste licença. Arrastaste ruidosamente a cadeira livre da minha mesa da esplanada para te anunciares, circo-homem-bomba chegado à terra. Depois sentaste-te, familiar, como se aquele lugar te pertencesse desde sempre. Não te estranhei. Limitei-me a dar-te as boas-vindas por cima dos óculos, enquanto fechava as notícias da semana e as colocava ao lado da chávena já bebida. Costume de sábado de manhã, dois botões de camisa aberta e barba por fazer a roçar as gordas com pouco interesse. Sorriste, enquanto te ajustavas um pouco na direcção do sol, para que a luz te entrasse pelo pescoço em golfadas engolidas para o meio de ti. Via-se que estavas há muito à espera do gozo desses raios com horas extra, a garantir dias de esplanada e risos. Trazias tatuada no rubor das faces uma vontade exagerada de sentir. Não te estranhei sôfrega. Soube de imediato quem tu eras, quando te enrolaste na mortalha do cigarro e me levaste contigo o pensamento num fumo sinuoso. Depois, com as pernas cruzadas e saia cigana, abriste a tua curiosidade gaiata numa entrega instantânea, no dia da chegada. Não é para todos essa convicção. Observei-te enquanto gesticulavas as tuas aventuras. Sorri, de soslaio, aos teus desvarios. Atento à próxima história. Disse-te coisas de mim. Depois, num malabarismo de habilidades de mulher de circo, pegaste em mim e leste-me as mãos. Franziste o sobrolho, enquanto eu te engolia o fogo, e deixaste escapar por entre os dentes uma qualquer fatalidade impronunciável de linhas cruzadas. Endireitaste as costas e, hirta, afirmaste a tua autoridade de pitonisa de trazer-por-casa. Futuro assim. Passado outro. Longa esta linha. Sensual esta aqui. Filhos. Infortúnio. Dinheiro. Sucesso e morte. Tudo. Depois riste-te, levaste o polegar ao queixo e depuseste o indicador sobre os lábios. Pensativa. Imperturbável. Entendi-te num ápice. Destino marcado a pele e carne. Era o teu nome inteiro que vias na palma da minha mão. Maria. Cheia de Graça.