segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Travessa das Gatas


Chama-se Gama. Assim, sem primeiro nome nem outros atributos que lhe façam figura. Gama simplesmente. Foi baptizado na memória do jardim, onde a sua dona pela primeira vez sentiu os estragos que um raio de sol pode fazer. Tudo aconteceu numa manhã solarenga de Outono. A luz enchia cristalina o céu e escorregava leve pela copa das árvores para depois deslizar pela estátua triunfal do navegador. Era imponente aquela figura de barba farta a segurar a âncora da conquista, num domínio absoluto de esfera-armilar a coroar a espada da submissão. Catarina teria aí uns 26 anos e movia-se com a paixão de andar de lentes apontadas, à espera que a sombras certas a deixassem gravar na Hasselblade o espírito das coisas sem alma.
Desde que lhe tinham oferecido a sua primeira câmara nunca tinha deixado que lhe entrasse pelo diafragma coisa alguma que aparentasse estar viva. Ficava-se pelas inanimadas. Monumentos. Prédios. Pontes. Contentores. Bermas de estrada. Por vezes folhas. Mortas. Era assim desde o dia, em que ainda criança, alguém lhe contou que na Índia se acreditava que a alma era capturada sempre que se fotografava de frente o rosto de uma pessoa. Isso mesmo. Um disparo e o espírito voava direitinho para os sais de prata e ficava para sempre aprisionado numa gaiola em seis por seis. Aquela revelação tinha-a impressionado e desde então nunca se atrevera a ser cúmplice de tamanha desumanidade. Optou pela missão contrária. Em vez de sonegar iria dar vida ao que nunca tinha tido alma que se soubesse. Desde então diariamente procurava obstinada os indícios certos na incidência da luz da manhã, quando as coisas ainda não carregam nada que não lhes pertença. Carregava a tiracolo a paciência das grandes convicções e ficava dias à espera do momento da luz certeira romper o obturador. A seguir ao disparo só sossegava no quarto escuro da casa da Travessa, até preceber se havia ou não essência de ser a clamar vida. Sabia-o de imediato quando as primeiras imagens turvas lhe pediam socorro no fundo do tanque por entre a ténue luz avermelhada. Era um momento fantástico que acontecia raramente. Ficava deslumbrada. Ofegante. A assistir aquele espectáculo único de criar vida a partir do nada. Depois da revelação sentia no seu âmago o apelo de a poder invocar para além da película e do papel. Adoptava então mais uma gata vadia e chamava-lhe o nome da alma acabada de nascer. Já ia em 18 as que se espreguiçavam sorrateiras empoleiradas nos muros do quintal. Havia-as de todos os feitios. Riscadas, pretas. brancas, macias, assanhadas. Havia-as de todos os nomes. Moura, Misericórdia, Aviz, Diana. Todas impenetráveis. Todas vivas.

Naquela manhã andava à procura da melhor maneira de fazer viver aquela estátua. Estava há já dois dias determinada a levá-la para casa. Esperava de lentes apontadas que a luz deslizasse até à base dos degraus para captar o contraste exacto daquela alma-mármore. Era uma vez mais um trabalho de paciência. O momento estava a chegar. Catarina sentia o clamor na ponta dos dedos e no exacto momento em que se preparava para um disparar certeiro, um raio de luz encadeou-a e, sem querer, premiu o botão até ao fim. Não entendeu de imediato o que se passou, mas bastaram uns segundos para ver aquele corpo de homem imóvel caído aos pés da estátua. Tinha-se metido na objectiva e ela sem querer fotografou-o. Agora nada havia a fazer, uma alma só se apanha uma vez.
Chamou-lhe Gama. Agora é um belo gato malhado, de pelo longo e olhos perturbadoramente verdes que gosta de festas e de se roçar altivo pelas pernas de quem passa.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Rua do Calvário

Carminda subia a escada em grande correria. Não é que estivesse fresca e cheia de vivacidade, mas tinha uma urgência enorme em chegar a casa. Subia os degraus dois a dois. Vivia no 3º andar, o último, que as casas no bairro não são muito altas. Prédio antigo de escadas empinadas, Carminda carregava às costas uma enorme dor de cabeça que transportava juntamente com a ansiedade. Abriu a porta tremendo de vontade, ou, talvez até, de pavor, ou de arrepio.
Largou a pasta de trabalho, correu ao quarto no fundo do longo corredor, descalçou-se, enfiou as pantufas de carneira e voou à cozinha para um relaxante chá de menta. Caneca às flores que a Tia Rosa oferecera no Natal, um pratinho de biscoitos que trouxera do Sr. Gaspar que além de carne vendia doçarias e legumes, pousou tudo em cima da mesa em frente ao sofá. Apercebeu-se de que se esquecera de tirar o casaco que despiu não tendo já coragem de o ir pendurar ao bengaleiro da entrada; atirou-o para a cadeira estofada do canto.
Neste momento teve de parar um pouco, pobre Carminda, que aquilo era uma aflição todos os finais de tarde em dia de leituras novas; ia começar o calvário.
Diante da estante percorria com os seus olhos gulosos a risca de cores desalinhadas. Enquanto em goles pequenos o chá lhe ia suavizando as dores de cabeça com que acordara, amortizando um pouco os músculos, a contracção, a nervoseira. As lombadas aguardavam-na, com pose de senhoras finas. Embora prontas para a briga. Eram inúmeras, variadas, quase todas coabitando, ali espartilhadas, desde o tempo do seu pai que como ela passara horas de alheamento absoluto a velejar naquele fabuloso oceano de letras.
Carminda suspirou com o corpo todo. Percorreu de olhos fechados os pés, as canelas, as pernas, distraiu-se um pouco na zona do umbigo, do ventre, e voltou a fechar os olhos que só abriu depois de completo o exercicio de relaxamento. Descontraiu o pescoço, rodou os ombros em desenhos circulares, para cima, para baixo, sacudiu as mãos, desfez-se, o melhor que soube, do manto de tensão.

De costas viradas, lombada azul, ferro em ouro com letras bonitas gravadas por mãos que já não há, lá estava ele. O livro escolhido para começar nesse dia. Aproximou-se da prateleira, levantou a mão muito devagarinho, vai a retirá-lo do seu lugar e zás!! era sempre aquilo!
De cada vez que Carminda ia buscar um livro "novo" havia sarilho. O livro não queria ser incomodado, escapava-se-lhe. Recolhia-se atrás dos companheiros, corria, em tropelia, por trás deles, escapando à mão que o queria alcançar. Carminda abraçava, braços esticados, os livros descompostos agora; alguns caíam desequilibrados para o chão, outros tombavam sem o encosto do lado, e o livro escolhido agredia-a com mau génio atirando-lhe à cara alguns parceiros de capa dura, chegando ao ponto de por vezes a ferir. Às tantas a estante despia-se e, nessa altura, começava o confronto final. Carminda conhecia este calvário de cor. Frente a frente, olhos nos olhos, abria as mãos devagarinho e num gesto repentino, zuca! agarrava em palmas o cobiçado foragido.

Extenuada sorria, sorria sózinha na sua sala enorme; sabia que acabava por vencer, sempre. Os seu livros tinham personalidade própria, ginete, mau feitio, e sentiam-se no direito de não ser incomodados. Ela adorava-os assim. Depois de domados, transformavam-se em dóceis amigos de partilha. E o calvário acabava. Carminda deliciava-se então em leitura sôfrega, sabendo que assim que a terminasse tudo começaria de novo.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Travessa de Ana Vaz

Desde que se lembra de existir que sempre teve um fascínio por fardas e autoridade de botas-engraxadas. Provavelmente por causa do seu tetra-avô da Prússia, que lhe ficou de herança em tela, depois de se terem ido com as duas guerras todos os títulos, pergaminhos e anéis da família. O avô de Anna era um nobre como os demais, um homem de faces rosadas e longas patilhas em curvatura até ao farto bigode retorcido. Careca proeminente, sobrancelhas carregadas e papada real. Vestia uma casaca em azul-marinho engalanada a dourados, com uma corrente a cair-lhe do ombro esquerdo ligada à imensidão dos feitos heróicos, agarrados ao peito em forma de medalhas e outras comendas. Mãos postas, ar altivo e de olhos pequenos, brilhantes e vivos. Anna sempre achou que aquele avô a seguia para todo o lado. Onde quer que estivesse sentada, na imensa sala de jantar da avó Cornélia, os olhos daquele homem olhavam-na de frente. Andou que tempos a tentar deslindar aquele mistério de pressentir que não era de tela e tinta o avô que a olhava com tanta presença. Um dia sem ninguém dar por isso esgueirou-se e fechou a porta da sala sem fazer barulho. Assomou-me então ao aparador, que estava por baixo da pintura a encher a parede de história, pôs-se em bicos de pé para ficar o mais perto possível dele e olhou para cima. Aí, ao sentir aqueles olhos totalmente fixos nos seus, teve a certeza absoluta que por trás da corrente dourada sobre a farda azul, batia um coração.

A partir desse dia passou a guardar com ele os seus segredos. Sempre que podia voltava à casa de Belém e confessava longamente o que lhe ia na alma. O avô Segismundo, veio a saber muito mais tarde o seu nome, assistiu com uma atenção permanente ao desenrolar dos primeiros amores, dos primeiros trabalhos, dos sonhos e das viagens. Nunca a censurou. Mostrava uma compreensão sem limites do alto da sua parede e uma ternura que Anna não conseguia sentir em nenhum outro ser. Depois da avó Cornélia ter partido, Segismundo mudou-se para o apartamento dos seus pais. Anna continuou a visitá-lo sempre que regressava a Lisboa para lhe falar dos desamores e outros problemas da sua solidão executiva de saltos-altos e caviar em primeira-classe. Visitava-o já com os filhos crescidos e com o fim da carreira a mandá-la para o sossego da casa do Alentejo. Era esse avô o único homem que ela em toda a vida conseguiu olhar nos olhos e despir-se de si. Agora estava na sua sala da casa de Évora, rodeado como ela de memórias e outros livros. Fazia-lhe companhia ao serão e tinham longas conversas enquanto crepitava lentamente a lareira da sala grande da casa da Travessa. Ontem teve uma boa notícia. Segismundo revelou-lhe que a Aninhas, a sua neta mais nova, no último fim-de-semana de visita da família, esperou que todos se fossem embora, fechou atrás de si a porta da sala, pôs-se em bicos de pés, olhou-o nos olhos e chamou-lhe avô.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Rua Fria

Decididamente, ela não gostava do frio. O que para ele era uma triste frustração, não conseguia acompanhar-lhe o porquê. Havia tantas coisas para agradecer ao frio. Estava-lhe na pele aproveitá-las. O ar sempre limpo, os cheiros autênticos, as manhãs revigorantes, o passeio desafogado pelas ruas, as castanhas cantando estalidos, nas brasas… Ele consumia o frio como quem devora com gula o pitéu preferido, ou desfruta, grato, a dádiva dos cinco sentidos. O chocolate quente, espesso, os chás de mil sabores, as chávenas, a expelir fumos e aromas, que agarramos com ambas as mãos para abraçar o aquecimento brinde, a sopa que chega à mesa a escaldar por que arrefece depressa. A vontade de chegar a casa para a magia duma manta nas pernas num descanso escolhido a média luz, lareira acesa, o pensamento hipnotizado pelas formas inventadas no reboliço das chamas. Bailarinas caprichosas, lindas. O cheiro-bom das brasas ainda mornas no despertar de cada dia. E, lá fora, o ar gelado a desejar-nos saúde, a carregar-nos de bateria.

Ele queria-a tanto a seu lado para avivar os calores do frio.
Mas Sílvia fugia-lhe. Sempre tensa. Apertada nos músculos que a definhavam. Recolhida. Insonsa. Vergada sobre o seu próprio corpo como um bicho-de-conta. Queixosa e rabugenta.

Ele falava-lhe nas virtudes dos artesãos; das fábricas que produziam e das lojas que vendiam. Nos sobretudos, nos blusões, no gozo do barrete ou do boné de feltro, na samarra, nas botas de carneira forradas a pelo. E aqueles casacos fantásticos tricotados com lã virgem que até pica a pele? os cobertores de papa tecidos com lã churra de ovelhas que já quase não há, a cheirar a infância? As escamas no corpo das pessoas, cebolas humanas, chouriços de nariz vermelho de pingo a cair, os apuros só para descalçar a luva da mão direita em busca dum lenço perdido nos confins do bolso…cruzando com escárnio o vizinho, que escolhe lavar o pingo na manga. Coisas próprias de nós. Fruto de alternância em estações. Todas divertidas ou belas se assim o decidirmos; todas boas se sentarmos o coração à camilha de braseira.
Mas Sílvia, sempre reclamando o verão, a nudez, a luz, os banhos de sol, os prazeres da praia.

- Sai, sai minha querida, sai. Que não percebes nada. Não é o tempo que está frio. És tu que és Inverno em qualquer estação, a qualquer hora dos dias...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Rua dos Mercadores

Quem lá mora: bancários, funcionários superiores da Câmara e um ou outro dos serviços municipalizados e vogais da administração de empresas municipais. Vogais, não presidentes que esses foram para os Montes.

Tinha aberto a rua, a famosa família Imaginário. Antigos e muito repeitados comerciantes da terra. A seguir, tinha ido o boticário e ao mesmo tempo, os Realista, republicanos de gema. O bisavô do actual - comerciante de tudo a um euro - quis até mudar de apelido, a favor dos ventos da época.

Todos tinham começado pelas feiras. Até o boticário que antes era ervanário. Primeiro com uma mula, depois com uma parelha e depois com uma Transit, em segunda-mão. Ajoujadas, eram o grande avanço tecnológico dos 70 e tinham menos mão de obra que as mulas. Os Imaginário, por exemplo, tinham tanta estimação na sua que até lhe puseram nome - a Russa - em homenagem à primeira mula da casa. A furgoneta havia sido encarnada, em nova, mas estava tão surrada do sol que a cor só se conhecia debaixo da dobrinha do tejadilho.

Os mercadores de hoje, não moram na cidade. Foram para os arredores. Já não dão nome às ruas. Nem às carrinhas!

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Travessa dos Lagares

As pretas da Califórnia e as chilenas tinham-se para lá mudado há já uns anos. Moravam paredes meias com as Fragas da Casa Amarela. As Nevadilha, da serra de Jaen, snobs como ninguém, paravam só para cumprimentar as Manzanilha, verdes de inveja das Gordales, companhia inseparável daquelas que, em Sevilha, aparecem sempre juntas com os Finos de Jerez e as homónimas liquidas de Sanlucar.

As Espertas, apesar do nome, discretíssimas. As Galegas, mais numerosas e muito apreciadas pela qualidade das suas gentes, eram as rainhas da rua. Responsáveis pelos azeites mais finos e bem apaladados.

Nos Lagares, como no resto da cidade, mora quem se deixa moer, neste caso, as azeitonas.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Largo da Porta de Moura


Tenho a convicção inabalável das pedras da calçada. Hão-de caber no seu sitio e fazer do preto o contraste da portugalidade rendilhada a maço, areia e água. Vejo os calceteiros no agacho do sol da tarde, com o lenço suado a sair do chapéu poeirento e penso nisto. Solidarizo-me depois com eles no arquear das costas a alombar com a jorna de fazer um sitio de se pisar. Olho de seguida para o amontoado das pedras brancas e pretas e sinto nos meus dedos calejados, a repetição ardente desta coisa de ser operário-artista a escrever com a dureza das palavras uma história onde se possa andar por cima.

Há quem faça fontes. Eu do mármore conto histórias. Letras. Sílabas. Palavras. Até que se encaixem em desenhos por onde saia água que me mate esta sede de escrever.
Há os que levantam catedrais com o granito para chegar a Deus. Eu com Ele faço rimas, à falta de melhor para chegar a mim.
Há ainda os que de escopo em riste escrevem epitáfios na lápide que encerra um tempo. Prefiro esculpir capítulos com a prosa quente da minha carne-viva.

Acerco-me do amontoado das pedras e pego numa. Com o polegar percorro a aresta rugosa. Sinto a irregularidade da forma enquanto os dedos se me enchem de pó. Ignoram-me os homens cabisbaixos de olhos postos na calçada por fazer, martelando a sua repetição. Ainda bem. Deles só quero a constatação da obra feita. Não quero palavras. Essas vejo-as no polimento do fontanário à minha frente a jorrar límpido em catadupas.

Subo os degraus até ao frescor da água. Olho para baixo e vejo-me ir ao fundo, ganhar volume e novas formas no ondulado circular da minha imagem. Refresco-me deste sol abrasador. Olho para o lado e vejo os calceteiros continuarem meticulosamente a ladear calhaus, agora irmanados em desenho geométrico. Dá-me uma vontade súbita de papel e caneta. Volto-me e já não vejo o monte de pedras. Vejo sim palavras para escrever. Agarro-as. Meto-as nos bolsos e sento-me ali mesmo a fazer delas coisa viva.