Chama-se Gama. Assim, sem primeiro nome nem outros atributos que lhe façam figura. Gama simplesmente. Foi baptizado na memória do jardim, onde a sua dona pela primeira vez sentiu os estragos que um raio de sol pode fazer. Tudo aconteceu numa manhã solarenga de Outono. A luz enchia cristalina o céu e escorregava leve pela copa das árvores para depois deslizar pela estátua triunfal do navegador. Era imponente aquela figura de barba farta a segurar a âncora da conquista, num domínio absoluto de esfera-armilar a coroar a espada da submissão. Catarina teria aí uns 26 anos e movia-se com a paixão de andar de lentes apontadas, à espera que a sombras certas a deixassem gravar na Hasselblade o espírito das coisas sem alma.
Desde que lhe tinham oferecido a sua primeira câmara nunca tinha deixado que lhe entrasse pelo diafragma coisa alguma que aparentasse estar viva. Ficava-se pelas inanimadas. Monumentos. Prédios. Pontes. Contentores. Bermas de estrada. Por vezes folhas. Mortas. Era assim desde o dia, em que ainda criança, alguém lhe contou que na Índia se acreditava que a alma era capturada sempre que se fotografava de frente o rosto de uma pessoa. Isso mesmo. Um disparo e o espírito voava direitinho para os sais de prata e ficava para sempre aprisionado numa gaiola em seis por seis. Aquela revelação tinha-a impressionado e desde então nunca se atrevera a ser cúmplice de tamanha desumanidade. Optou pela missão contrária. Em vez de sonegar iria dar vida ao que nunca tinha tido alma que se soubesse. Desde então diariamente procurava obstinada os indícios certos na incidência da luz da manhã, quando as coisas ainda não carregam nada que não lhes pertença. Carregava a tiracolo a paciência das grandes convicções e ficava dias à espera do momento da luz certeira romper o obturador. A seguir ao disparo só sossegava no quarto escuro da casa da Travessa, até preceber se havia ou não essência de ser a clamar vida. Sabia-o de imediato quando as primeiras imagens turvas lhe pediam socorro no fundo do tanque por entre a ténue luz avermelhada. Era um momento fantástico que acontecia raramente. Ficava deslumbrada. Ofegante. A assistir aquele espectáculo único de criar vida a partir do nada. Depois da revelação sentia no seu âmago o apelo de a poder invocar para além da película e do papel. Adoptava então mais uma gata vadia e chamava-lhe o nome da alma acabada de nascer. Já ia em 18 as que se espreguiçavam sorrateiras empoleiradas nos muros do quintal. Havia-as de todos os feitios. Riscadas, pretas. brancas, macias, assanhadas. Havia-as de todos os nomes. Moura, Misericórdia, Aviz, Diana. Todas impenetráveis. Todas vivas.
Naquela manhã andava à procura da melhor maneira de fazer viver aquela estátua. Estava há já dois dias determinada a levá-la para casa. Esperava de lentes apontadas que a luz deslizasse até à base dos degraus para captar o contraste exacto daquela alma-mármore. Era uma vez mais um trabalho de paciência. O momento estava a chegar. Catarina sentia o clamor na ponta dos dedos e no exacto momento em que se preparava para um disparar certeiro, um raio de luz encadeou-a e, sem querer, premiu o botão até ao fim. Não entendeu de imediato o que se passou, mas bastaram uns segundos para ver aquele corpo de homem imóvel caído aos pés da estátua. Tinha-se metido na objectiva e ela sem querer fotografou-o. Agora nada havia a fazer, uma alma só se apanha uma vez.
Chamou-lhe Gama. Agora é um belo gato malhado, de pelo longo e olhos perturbadoramente verdes que gosta de festas e de se roçar altivo pelas pernas de quem passa.