sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Travessa do Megué

Mariano Graciano era um menino da rua lindo. Rapaz único duma família de 4 irmãos habituara-se desde muito cedo a acumular tarefas de homenzinho com brincadeiras de rua. O nome herdara-o da sua avó Maria das Graças, assim mesmo no plural. Por altura do seu nascimento os seus pais estavam longe de imaginar que Deus lhes enviaria 3 meninas. Foram elas que ficaram com os nomes mais simples. E as tarefas. E a vida dos dias. E os dias da vida.
Mariano depressa se desembaraçou do seu nome e fez-se chamar pelas suas iniciais. Era simplesmente o mê.guê. O é abriu-se depois pelo sol das crianças.
Nas últimas tardes Megué chegava a casa sistematicamente cabisbaixo. Triste como o pano da cruz, nas palavras da Tia Eugénia. Não falava com ninguém, não queria brincar, não saía do quarto.
Vai falar com ele Mª da Luz. Ele só tem jeitos de se abrir contigo. E Megué abriu-se. Falou de rompante, as palavras em cascata. Saíam-lhe fortes em linha recta, de jacto; embora descaíssem de seguida em degraus surdos como o seu humor . Não era coisa simples. O rapaz parecia uma bobina a desenrolar-se: os amigos, as ruas, o movimento, as pessoas, os passos das pessoas, o ruído mais audível do que nunca nas calçadas, dos saltos, das solas, as discussões, mães e crianças, maridos e mulheres, desencontrados, barafustando, os preços, o disparate, o inútil, a tua avó, a madrinha, o míudo da tua irmã . Megué não conseguia estar quieto, remexia as mãos como se quisesse enrolar primeiro uma depois a outra, primeiro uma depois a outra… levantava-se, voltava a sentar-se, dirigia-se à janela olhando para fora sem ver, falando, descendo em rappel o rol de ideias que tinha dentro do seu peito. Maria da Luz imóvel. À espera. Escutando, quieta, calada, sem tempo. E Megué continuava em desfio: e umas iluminações palermas, pindéricas mais do que nunca, e uns sacos pendurados em todos os braços e mãos, embrulhos em corpos cansados e rostos semi risonhos, alegrias em modos faz de conta, gente perturbada, desorientada, em movimentações tontas, e mais e mais. O reboliço, a pressa, narizes e bochechas coloridos pelas montras, os tropeções nas lojas, as filas nos hiper. Na sua cidade pacata. Serena. Maravilhosa. Agora em frenesim.
Eu não desgosto do Natal, Luzinha, eu não desgosto do Natal…acho bonito…
Então?
Então, não percebo nada, tu percebes?
Não percebo o que queres perceber, Megué. Não há nada para perceber. É Natal...

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Largo da Senhora da Natividade

Acordara com a excitação da primavera por chegar e vestira a sua melhor roupa. De samarra às costas saíu ainda noite pelos carreiros com vontade de desfolhar cada minuto até chegar à cidade. As botas cheias de lama agarravam-no ainda mais à terra, à medida que se aproximava a passos largos do destino. Caminhava agora pela berma da estrada com o norte do pináculo da Sé lá bem ao longe. Ouvia os latidos dos cães presos a anunciar-lhe a presença, com o casario a roubar cada vez mais o espaço à planície. O chamamento de sinos lembrou-lhe que ainda tinha tempo de sobra. Por uma vez podia manter este vagar, já que as madrugadas do lugar sem história onde vivia não lhe costumavam dar tempo para grandes contemplações. Mas hoje sim, podia compassar a marcha e deixar que o cheiro a terra molhada lhe entrasse pelas narinas numa tontura de verde. Era um odor bom que lhe rasgava por dentro os horizontes. Não sabia como o descrever. Inalava-o e sentia-se ali irmão das ervas, das àrvores acabadas de podar, do musgo macio, das teias de aranha à contra-luz, dessa vida toda com que partilhava o apelido. Sabia que era essa coisa inexplicável a única razão que sempre o prendera à aspereza do campo naquela modesta casa da courela do Carpinteiro. Podia ter ido para o mar. Mas era salgado. Podia ter escolhido a América. Mas era só. Podia ter estudado e feito vida na cidade. Mas era menos. Optou pela irmandade de ficar. E foi feliz. Era agora um homem solitário desde a partida da mulher para o céu e dos filhos para a vida. Fechado no circulo que alternava entre as mãos calejadas das inclemências da jorna e o inverno à lareira a hibernar das estações. Um homem de poucas falas que se contentava com o que lhe saía da mãos e da terra e a quem bastava a naturalidade de existir e morrer e nascer outra vez.
A manhã já ía alta. Sem dar por isso estava quase a chegar. Sacudiu a lama da botas e caminhou a passo mais rápido na calçada da rua de Machede, deixando atrás de si a muralha aberta por onde se entra na cidade. Deixou escapar um sorriso de contentamento por ser hoje o dia que era. Todos os anos, já não se lembrava há quanto tempo, esperava pacientemente que ele chegasse, com a certeza que nele estava guardada a chave da sua vida. Uma memória que o fazia ser sempre o primeiro a vir, para assegurar com o seu silêncio e músculos que tudo estava pronto para a receber. Os outros vinham depois. Os pastores, os animais e todos os que iriam fazer as delícias da míudos e graúdos ao som das músicas da época. Mas aquela hora só lá estava o padre que, depois de lhe perguntar pelas novidades do ano, lhe pedia ajuda nos ultimos preparos e lhe dava a roupa para trocar. Passado momentos aparecia vestido a rigor com um manto castanho e um ar grave, de cajado na mão pronto para pôr a farta barba negra que completava o figurino. Dirigia-se então para a cabana e via se tudo estava em condições para a festa. Aos poucos os anjos chegavam para o ensaio. E os Reis Magos. Por fim a Maria apressada vestida na tradição de véu azul a realçar-lhe a beleza de míuda. Era a véspera de Natal. O presépio vivo estava montado no Largo e nele a promessa, numa repetição anual, da universalidade feita gente. Era, de facto, o melhor dia do ano. Era o dia de ele ser José outra vez.