quarta-feira, 12 de maio de 2010

Travessa de Beatriz Vilhena

Beatriz Vilhena olhou-o no fundo do olho, perscrutando no dilatar da sua única pupila assustada se ele estava ou não a dizer a verdade. Não era mulher de se ficar sem explicações. Sentia a léguas o cheiro a esturro e não se lembrava de ter deixado nada ao lume. Ele era uma criatura imponente, mas aquela mulher, metia-lhe respeito. Quando o olhava assim, mãos na anca, fixada nos seus mais ínfimos movimentos, sentia um frio a descer-lhe pela espinha e logo ficava indefeso e nu, pequenino de nascença, sem eira nem beira, numa angustia que não conseguia explicar. E desta vez era a doer. O inquérito mal tinha começado e já ele procurava algum buraco para se enfiar. Até hoje nunca tinha percebido a coisa. Beatriz não lhe dirigia palavra. Os pontos de interrogação apareciam-lhe à frente, agigantados, como anzóis ao contrário a exigirem-lhe que os mordesse. E ele, boca aberta, mudo, deixava de ser bicharrão e voltava a babar-se em desculpas, a esperar açoites e colo no final. Beatriz Vilhena tinha-o assim, dominado, amansado e submisso desde aquele dia em que numa briga de valentes ele perdeu o olho esquerdo e por um triz, não se esvaiu desta para melhor. Beatriz levou-o para casa. Tratou-lhe das feridas. Trouxe-o de novo à vida e deu-lhe um tecto. Ele rendeu-se aí mesmo. Trela posta. Fiel. Satisfeito. Disse-lhe que podia tudo, menos tocar nas galinhas. Isso é que nunca. Hoje desgraçou-se. Não conseguiu mais resistir à tentação e depenou uma. Apanhou-a a jeito, foi-lhe ao pescoço e comeu-a. Não havia como esconder esse infortúnio de carne que se abatera para sempre. Beatriz Vilhena sabia que isso um dia iria acontecer. Por isso, há muitos anos atrás quando o salvou, deu-lhe um nome. O Cão. Pirata.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Beco da Espinhosa


Está escuro. Nove da noite e tu não chegas. Gostava que viesses para casa, são horas de descansar. Mas tu não queres vir, que não descansas, não sabes. Relaxar, repousar, descontrair é acção, julgas que não? Mas é um dom que esqueceste, já não consegues, não tens…
Há anos ensinei-te. Íamos para a quinta ao final do dia e tu passeavas descalça, um par de sapatos numa mão, a outra agarrando a minha. Lambias aquela pausa que te sabia a uma porção de coisas. Era o paladar da vida ao gosto do tempo. Cada pedaço um dia inteiro e nós vivíamos assim dez vezes mais do que qualquer um. Uma pegada na terra e era uma manhã desdobrada, uma gargalhada solta momentos duma tarde sem fim; uma corrida na relva e a noite voltava cumplice, bicho de conta ao nascer do sol.
Eras linda, rapariga. Só por que vivias. Sem espinhas nem delongas.

Vem-te embora. Larga essa lida, lambida, penosa. Beco sem saída se não fugires já. Anda, mulher, solta-te, avança. Deixa essas horas espinhosas e volta rapariguinha.

Rua do Muro

Abraças-me a cintura. Esvazias levemente os pensamentos no meu ombro enquanto me dizes até já. Descem-me pelo peito. Caem-me para o bolso onde se misturam com as chaves do meu mundo. Tento agarrá-los com a mão direita. Mas passam-me pelos dedos e escapam-se. Como tu. Escorregam. Livres. São teus de facto. Os pensamentos. Não são de se prender. Deixaste-os comigo enquanto foste dar a tua corrida à volta das muralhas. Livraste-te deles, por momentos, só para não ires tão carregado. Sinto agora a rugosidade das pedras a tocar-me, áspera, enquanto me encosto no muro e te vejo desaparecer ao longe em passo acelerado. Rasgo um sorriso por me dares a guardar os teus segredos sem pedires licença. Tento uma vez mais agarrá-los com vontade de entrar por ti adentro. Por fim consigo. Apanho um e passo de rompante para o fundo da tua mente. É a tua cabeça inteira na minha. A pensar como tu. A ver-me por fora o que eu não sei que sou por dentro. Extasio quando vejo o que tu sentes, neste estar assim a contrastar, macia, o muro que me arranha a pele. E fico neste embalo de te saber entregue a mim numa mistura ocupada de mistérios. Perco a noção de tempo na invasão de sentidos no lado de fora. Tu em mim. Eu de ti. Entronizada. Deste lado da muralha, a saber-me a dona do castelo. Contigo a colocar-me a tiara, o ceptro, o coração nas mãos. Desfaço-me na surpresa absoluta do que é saborear-me assim, por fora, numa imagem de mim alucinante. Rainha das copas. Baralho de cartas a revelar todo o futuro.
Passou-se o tempo. Apareces de súbito. De corpo inteiro. Sôfrego. Ofegante. Determinado a resgatar o que é teu. Trazes-me à terra. Devolves-me os meus olhos do presente. Sorrio-te com a cumplicidade cega de te conhecer agora por dentro. Ao fazê-lo, saem-me da cabeça os pensamentos e voltam para o bolso onde os deixaste. Encostas-te então a mim e com mãos e beijos sugas-me o que é teu teu e levas-me contigo ao outro lado das muralhas.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Travessa do Sertório

Cerrava os dentes por causa da dor. E não se lhe ouvia um grito. À sua frente passeavam paisagens de mar e sabores de sal que era o que sonhava para depois. Agora não era hora de sofrer. Pelo contrário sorria com doçura escutando-a. Queria sentir como ela os odores do amor. Mas era por ela que os sentia e ela falava do fulano que não iria nunca ser humano para ele. Era família. Sangue porque sim. O rancor não era verdadeiro era dor de amor. E Sertório trocava os nós pelos sarcasmos amigos de quem se felicita pela felicidade do outro em mentiras do coração. Mafalda descontendo a poesia da alma na palma das mãos que suadas lhe entregava de amizade antiga. Sertório nem guerreiro podia, era cruel em lutas de paixão e queria ganhar batalhas cerradas de chama e longo pavio. Mas esta guerra era desvitoriosa. E ele general em cavalo amuado. Sem a musa no peito de si.

Publicada por RSG