quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Rua do Hospital do Conde

Na cama 5 da enfermaria 3 jazia Guilherme desnorteado. Não fazia ideia por que o tinham internado, só sabia que se sentia cansado.
Deram-lhe um lugar à janela e ele contava as folhas do outro lado do vidro. Perdia-as e perdia-se sistematicamente, voltando ao principio porque era impossível contar as folhas.
Mas insistia todos, todos, os dias. Memorizava-as para saber donde partir na contagem seguinte. Sempre perdendo a conta e sempre recomeçando.
De tanto olhar já só via uma mancha amarelo encarniçada feita árvore inteira.
Uma mancha bruta de cor que se iluminava em auréola deixando-os turvos a ambos. Guilherme e a árvore sem se saber quem desinformava quem.
Todos os dias, sem falha, Guilherme pedia também que lhe plantassem a árvore defronte de si, no quarto. O pessoal da enfermaria ria-se e ia trazendo pernadas para uma jarra enorme, de plástico, que colocava na degradada mesa perpendicular à janela. Os ramos sucediam-se semana a semana agora à frente do seu olhar. E ele, doente, sem saber se contar as folhas lá fora se gritar “não quero esta ninharia, eu quero a árvore inteira aqui!!”. Guilherme não sabia verbalizar o horror que se lhe entranhava. No jardim do Hospital a árvore desnudava-se. À sua frente as jarras transformavam-se. Estava tonto. Enlouquecia. E ninguém atendia ao que ele tanto perdia. Em desespero chamava com o olhar a sua árvore e sussurrava-lhe, vem para aqui! Mas ela não reagia e até se desnudava sem perceber que aquilo se podia.
Na cama nº 5 era agora Guilherme que se transformava. Sem se ter dado conta a árvore já não existia como no 1ºdia. Era um corpo de ramos vazios. E nus.
E quando viu o que via, vestiu-se, não esperou pela ordem de alta; e saiu. Praguejou rua fora. Praguejou contra o hospital, o pessoal, a árvore, as mutações, os humores.
Praguejou contra os seus pavores e os seus amores. E partiu para o frio e a ventania, embrulhando no casaco a precariedade da liberdade que sentia.
De repente parou. olhou o jardim do Hospital. Procurou a sua janela.
E viu que à frente dela estava a árvore ainda inteira....

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Travessa da Bola

Trazia-te no fundo dos bolsos, bola amarrotada num vestígio de carta que perdera as letras de tanto me agarrar a ela. Não se apagaram, as palavras, antes sairam do papel, escorregando para o bolso e depois pernas abaixo até ao passeio. Senti-as descer, as letras, lentamente até à virola das calças, num percurso penoso de abandono e de partida. Senti-as depois, por baixo dos sapatos a ficarem espalmadas no chão. Perdendo o sentido, a lógica, toda a forma. Senti-te assim, derramada, a sair do papel. Mesmo assim continuava apertar-te despida da tinta, numa tentativa de ficares ali, para sempre em epístola fotográfica. Chapa de artista por revelar a preto-e-branco. Nua. Agarrava-te, nervoso, com os dedos calejados, ásperos, e fazia-te depois festas, com a ponta do polegar, como se o papel amarrotado, bola, que sentia no bolso, fosse a curva, redonda, do teu braço. Ao agarrar-te assim neste vestígio de ti, agarrava-me à memória do principio. Começo feito de papéis que nos escorregavam na ponta da caneta e se enchiam de coisas e paixão. Testamentos e juras. Cartas e promessas. Solfejo de músicas da alma em papel pautado. Trazia-te agora no fundo dos meus bolsos, vazia das palavras e das letras, sem te conseguir deitar fora, como se só por te tocar pudesses um dia viver para além do texto que se foi. Verbo feito carne outra vez.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Travessa de João Barradas

De janela aberta, ela começa a ouvi-lo. Desliga os sons da casa. As luzes, também. E escuta.
Segue a música que identifica com o que em jovem era. Cerra os olhos que usa agora em lanternas de interior. E deixa-se embalar pelo som. Míii, sool…réee..sool...momentos há eras guardados no sótão de si. Acompanha o rasto da luz. Não percebe se arde se alivia. Mas sorri. A viola toca sem nexo embora lhe faça todo o sentido. E dispara em memórias até ao jardim do passado. Maestrina de sóis.

Senta-se na cadeira de sempre, verde, de ferro e chapa de pregos pingados. Pousa os livros que partilha com um amigo tão particular dessa época de jardins. Eram uma delicia aqueles encontros que relembra. Sorri novamente, distraindo-se agora da viola, e vem-lhe à cabeça a frase preferida do João Barradas: “..eu? eu não tenho amigos! eu só tenho relações cordiais de convívio!!..”. Como ele insistia na sua teimosia de se manter diferente. Era tão divertido desconversar com o João. E era nesta desconversa que ela tanto aprendia. O pouco que sabia, fosse de filosofia, de literatura, o pouco que sabia de música tinha aprendido ali, com o Barradas, naquele jardim encantado do passado. E ali deixara ficar tudo o que sabia! Ou não...

De regresso a si, hoje, agora, naquele momento, certificava-se que não.
De janela aberta, escutando os sons da viola que saíam da casa do vizinho da frente. Apenas. Inesperadamente. O retorno de si em notas soltas de viola.
Num sótão onde esquecera tantos acordes mas que estavam lá. Limpos. Intactos. Em recanto arejado e cheio de pautas mágicas como são as pautas cheias. Melodias em tesouro de sons. Havia requiems sim. Mas o som que entrava por ela adentro fazia-se ouvir em allegro grazioso.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Travessa da Viola

Dedilho as cordas desta viola-folha-de-papel-pautado onde pinto as colcheias e as semi-fusas do som da minha alma. Dedilho-as escrevendo coisas sem sentido, numa cadencia de compassos quaternários em ritmo de adágio. Dedilho-me a mim nesta invenção, sonata, com uma mudança de tom maior pontuado de bemois. Saem-me notas das pontas dos dedos e entram engolidas nos ouvidos até ao fundo de mim. Rasgo um som brusco fazendo vibrar cada corda em uníssono. Risco. Amplifico-me. Electrifico-me. Salto para o palco. Cabelos compridos. Peito aberto. Agitação até romper a madrugada. Paro-me. Apago-me. Puxo um som suave da primeira corda. Grave. Intimista. Voz de mulher a seguir o ritmo. Xaile. Fado. Rouquidão de alma. Sobressalto por cima do baixo. Dedilho-me devagar. Traço leve. Nostálgico. Amarrado à sina. Ao passado. E deixo que saiam notas sem sentido numa melodia desafinada. Jobim com violão de papel, a compor para a garota que se foi. Requiem. Elegia. Virar de página. Viola no saco.

sábado, 24 de outubro de 2009

Travessa da Mangalaça

Não havia meio de se ir embora. Continuava ali parado. Estático. Do lado de fora da casa grande, como um cão. Ali estava, sem eira nem beira. Inconsolável. De olhar absorto e ombros decaídos, fazia mais de uma hora. Gritaram-lhe lá de dentro outra vez.
- Vai-te daqui! Faz-te à estrada. Não voltes mais! Olha que chamo a polícia...E ele, num, desamparo de não ter para onde ir, fustigado pela chuva intensa que o ensopava até aos ossos, ali continuava desvalido, numa apatia de meter dó. Sem mexer um dedo. Um cabelo que fosse. Árvore de pé ao deus-dará.
-Que raio se estava a passar? Como era possível ter chegado ali, enxotado como um animal da sua própria casa? Da casa onde vivia, ia fazer no dia 14 de Novembro, 63 anos. Da casa para onde tinha vindo logo a seguir à tropa, deslumbrado com a cidade grande e as saias das criadas e de onde nunca tinha saído, a não ser no verão, com os baús das férias, para os dois meses de martírio no nevoeiro da Praia-das-Maçãs. Como era possível ser escorraçado pela Dona
Maria do Patrocínio depois de anos e anos de serviço diligente. E ver-se ali no risco de se transformar num mangalaça, sem eira nem beira.
- Sim minha senhora. - Claro minha senhora. - É para já, minha senhora. Dias, semanas, meses, anos a fio a desfiar vontades e desejos, sem nunca, nem uma única vez, ter torcido o nariz a mostrar cara de má-vontade. E agora isto...um insignificante deslize e zás. Um chorrilho de disparates. De ingratidões. Uma desconsideração.
- A porta da rua, é a serventia da casa! Vai e não voltes
Roberto! Nunca mais apareças por estas bandas. Esquece-me. Esquece-te. Vai morrer longe, que aqui nem terra te resta para a sepultura.
- Vai-te daqui. Gritava ela tresloucada, ensandecida, a espumar de ódio vitupérios guardados, que ele nunca imaginou serem possíveis por tão pouco. Mas que culpa tinha ele de ter tropeçado, inocente, sem querer, naquela
carta velha e ter descoberto o segredo inenarrável da Dona Maria do Patrocínio... Por baixo daquele poço de virtudes, virgindade, decoro e novenas a Nossa Senhora dos Aflitos, afinal escondia-se Rosette, a famosa escritora das foto-novelas mais picantes de que havia memória. Um mega sucesso que já ia no seu quadragésimo terceiro número e que ainda hoje, mesmo na flacidez dos seus 84 anos, conseguia deixar Roberto desvairado de vontades.
Ai se ele tivesse sabido mais cedo ...

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Travessa do Cego

Então diz você que "nós" temos mau feitio?
A menina ouça lá isto: certa vez ia eu para o trabalho
e, Jesus!, como chovia, nesse dia!
Precisei contudo de passar pelo talho do Gaspar
seria tarde ao regresso e tinha em casa um jantar.
E assim fiz. Entrei e comprei o que quis e não quis.
Agarrei na saca, na outra mão a bengala, pendurado ao colarinho
o guarda chuva que já não tinha como o segurar,
e lá voltei ao caminho.
Chovia sim, mas que havia eu de fazer
estava já atrasado e não podia correr.
Pois olhe que passa por mim uma senhora bondosa
Vê-me de saca numa mão e bengala na outra,o chapéu por abrir
e avisa carinhosa: oh Sr. Ceguinho olhe que está a chover...!!!
Ai que vontade me deu de lhe bater.
Mas aguentei-me, menina, que eu sou de polimento
Só não contive ficar ali parvo sem nada de nada dizer.
E sabe o pouco que me ouviu ela?
«Ai não me diga, senhora, estou eu aqui encharcado,
molhadinho até aos pés carregado de sacolas e apressado
pro trabalho, que me distraí com o cuidado de tactear o
caminho, tão concentrado estava em não esbarrar com ninguém,
que - imagine! - é que nem vi que havia chuva a cair! mas que distracção a minha!
Mas se tiver por aí outra mão para me emprestar
ficava-lhe grato senhora, é que só trouxe
estas duas que Deus me deu ao nascer.
Se a senhora tiver três uma eu ia agradecer.»
A senhora ficou furiosa e não gostou da resposta
partiu dali danosa a falar com as costas pra mim:
são muito ingratos estes cegos, não vêem que só quero ajudar
têm mesmo mau feitio nem se lhes pode falar!

Pois sim, menina, temos mesmo mau feitio, ora não vê?!

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Travessa das Peras

Sezinando tu que preferes?
Sezinando refastelava-se melhor no sofá
estendia os pés languidamente sobre a mesa e respondia
Amor, é-me igual, escolhe aquilo que quiseres.
Pois sim, Sezi, mas sozinha não, quero a tua opinião.
Ir à Espanha ou ir à França é-me absolutamente igual ,
o que eu quero é estar contigo, pode ser em Portugal.
Constança dava ruidosamente mais uma dentada na pera,
já era a terceira; a ferroada acalmava-lhe os nervos,
nem tão pouco atendia áquilo que fazia.
Mas Sezinando vamos ambos passear, escolhe comigo o lugar.
Eu quero é estar contigo, paixão, o mais não me importa,
basta estarmos os dois, eu já to disse amor,
nada tenho a opor.
Opores-te a quê, Sezinando???
Crre, crre, Constança continuava defendendo-se na pêra.
Aquilo era fruto que nem tinha sabor mas tinha de roer aquele rancor
O que não foi suficiente estava-se já a prever
e até de boca cheia acabou por explodir:
Pois eu estou em crer que nem mereces ter mulher
Morgadinho de Roiz? quero eu lá mesmo saber
Continua aí sentado que eu parto e é já
Vou pra bem longe daqui morarei noutro lugar
Que este está cheio de nada, criatura sem vontades
Não aguento mais viver com quem nem sabe querer.
Constança agarra na cesta, corada e cheia de fúria
atira-lhe as peras à cara sai deixa a porta bater
E ainda lhe grita de fora: fica bem aí deitado
Leva as peras pró sofá e come-as todas Sr.Morgado!

Travessa do Tavolante

Há atrasado, como se diz na Invicta, tavolante era o mesmo que tavolageiro ou tabulageiro. Isto é, dono de casa de jogo ou, aquele que toma parte em jogos de azar.

Dentro em breve, as eleições para a Câmara Municipal de Lisboa serão a oportunidade para a explicação do resultado do PSD nas recentes legislativas. Se verá também, quantos tavolantes existem e quem são.

Nas eleições para o Parlamento, a coligação de partidos que apoia o Dr. Santana Lopes – candidato repetente à edilidade da capital – obteve mais votos que o PS. Parece portanto relativamente fácil a sua eleição, mesmo que o candidato nada acrescente à soma das parcelas.

Com as máquinas partidárias a trabalharem em conjunto, o que, por si só, constitui uma verdadeira vantagem e os líderes disponíveis para apoiar o candidato e galvanizar os eleitores dos respectivos partidos, convocando a votação na lista conjunta e dando a importância que a maior autarquia realmente tem e principalmente, simboliza.

Se, como se vê, a eleição parece segura, o Dr. Lopes anda resguardado há imenso tempo, poupando a sua imagem, o que lhe aumenta as possibilidades. Só se deixou ver na campanha nacional, uma vez. Não emite opiniões diariamente como era seu timbre em tempos passados. Tudo isto lhe facilita a eleição. Mas, e… se não for eleito?!

C’um diabo! O Dr. Lopes já foi tudo na política. Desde secretário de Estado a Primeiro-Ministro. Presidente de duas Câmaras Municipais. Conhecem-se os resultados. Não seria prudente absterem-se de o empurrar para mais cargos públicos? Será que fazem apostas sobre o homem?

Se a improbabilidade de não ser eleito acontecer, a que se ficará a dever? Aí, a Dra. Manuela Ferreira Leite perceberá, bem como os seus conselheiros, que os eleitores do PSD não entendem – nem entenderam – como se pode disputar uma liderança em Congresso e posteriormente, nomear o rival desse mesmo Congresso para candidato à principal Câmara do país. E portanto, provavelmente, ficaram sentidos! Nem se percebe como pode ter andado o seu principal conselheiro a predicar semanalmente contra o Dr. Lopes e ter dado a sua bênção a tão controversa decisão.

Uma pena! Porém, terá a vantagem de ficar explicado um resultado. Mas sobretudo, quem são os tavolantes! Os que participam na jogatina; os outros, os donos da távola, isto é, o dono da banca, teremos de esperar. Por enquanto, só se conhecem alguns croupiers.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Travessa da Tamara


Escorregavam as gotas das folhas e caiam-lhe sobre os pés.
Ela passeava distraída e devagar de olhos postos no chão.
Uma vez por outra levantava a cabeça
que mantinha por minutos paralela ao tecto do céu
queria que os vestígios da chuva lhe chegassem também ao rosto.
Abria a boca, recebia os pingos e sorria estonteada.
Ia pisando as pocinhas da calçada como se o incómodo da água fosse
uma benção intencional.
Apreciava aquele desconforto à maneira de consolo.
Desceu a Tv. da Tamara e o cinzento do dia avermelhou-se.
Mª do Patrocínio inventava cor fosse onde fosse
mas a ideia do fruto, desta vez, avivou-lhe a cor das dores.
Costumava fazer este ritual sempre que padecia.
E como por ali muitas vezes chovia era um luxo que podia.
Não se sabe precisar quanto tempo andava assim
Nem tão pouco ela própria dava conta por onde ia.
Tinha de vaguear sem pensar para conseguir reflectir.
Mª do Patrocínio encontrava os caminhos da vida assim
Sem gastar um tostão, sem precisar de mais nada
se não de encontrar uma rua pingada.
No bom tempo? percorria, pé descalço, os caminhos do riacho.
Naquele dia, porém, caía já a noite e ela não se resolvia
“que faço eu Maria” perguntava mil vezes para si.
Acendiam-se as luzes da cidade mas ela não podia regressar
precisava decidir que fazer com o pesar que carregava.
Esgueirou-se para uma igreja onde jazia um corpo.
Só uma pessoa lá estava e ela sentou-se também.
Confortou-se naquela paz onde ninguém queria entrar
respirou o cheiro intenso das flores a preto e branco
deixou-se ficar, e ficar...e ali quieta viu à lupa a solução.
Voltaram-lhe as cores das flores. Rejubilou. Decidiu que partiria.
Acreditou que ia para o Céu saiu da Igreja a correr
e foi excitada ruas fora, tinha pressa, ia pra casa morrer!