sábado, 24 de outubro de 2009

Travessa da Mangalaça

Não havia meio de se ir embora. Continuava ali parado. Estático. Do lado de fora da casa grande, como um cão. Ali estava, sem eira nem beira. Inconsolável. De olhar absorto e ombros decaídos, fazia mais de uma hora. Gritaram-lhe lá de dentro outra vez.
- Vai-te daqui! Faz-te à estrada. Não voltes mais! Olha que chamo a polícia...E ele, num, desamparo de não ter para onde ir, fustigado pela chuva intensa que o ensopava até aos ossos, ali continuava desvalido, numa apatia de meter dó. Sem mexer um dedo. Um cabelo que fosse. Árvore de pé ao deus-dará.
-Que raio se estava a passar? Como era possível ter chegado ali, enxotado como um animal da sua própria casa? Da casa onde vivia, ia fazer no dia 14 de Novembro, 63 anos. Da casa para onde tinha vindo logo a seguir à tropa, deslumbrado com a cidade grande e as saias das criadas e de onde nunca tinha saído, a não ser no verão, com os baús das férias, para os dois meses de martírio no nevoeiro da Praia-das-Maçãs. Como era possível ser escorraçado pela Dona
Maria do Patrocínio depois de anos e anos de serviço diligente. E ver-se ali no risco de se transformar num mangalaça, sem eira nem beira.
- Sim minha senhora. - Claro minha senhora. - É para já, minha senhora. Dias, semanas, meses, anos a fio a desfiar vontades e desejos, sem nunca, nem uma única vez, ter torcido o nariz a mostrar cara de má-vontade. E agora isto...um insignificante deslize e zás. Um chorrilho de disparates. De ingratidões. Uma desconsideração.
- A porta da rua, é a serventia da casa! Vai e não voltes
Roberto! Nunca mais apareças por estas bandas. Esquece-me. Esquece-te. Vai morrer longe, que aqui nem terra te resta para a sepultura.
- Vai-te daqui. Gritava ela tresloucada, ensandecida, a espumar de ódio vitupérios guardados, que ele nunca imaginou serem possíveis por tão pouco. Mas que culpa tinha ele de ter tropeçado, inocente, sem querer, naquela
carta velha e ter descoberto o segredo inenarrável da Dona Maria do Patrocínio... Por baixo daquele poço de virtudes, virgindade, decoro e novenas a Nossa Senhora dos Aflitos, afinal escondia-se Rosette, a famosa escritora das foto-novelas mais picantes de que havia memória. Um mega sucesso que já ia no seu quadragésimo terceiro número e que ainda hoje, mesmo na flacidez dos seus 84 anos, conseguia deixar Roberto desvairado de vontades.
Ai se ele tivesse sabido mais cedo ...

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