sexta-feira, 25 de junho de 2010

Rua de Olivença

Esperava pacientemente a chegada do correio. Era o melhor do dia. Gostava de tudo o que vinha fechado a cola e com remetente ao canto. Não importava o que lá viesse. Abrir a gume os envelopes revelava-se o mesmo prazer que rasgar com os dedos caixa de surpresas, presentes de natal ou festas. Não era o acto em si, mas a o facto de ser ele o destinatário. A constatação inequívoca de existir. De importar. Não se lembrava quando tinha começado essa coisa de ser só sombra. O momento em que começou a vaguear pelas ruas a procurar encontrões que lhe provassem que ainda era gente. Era ténue a recordação do momento em que começara a passar despercebido. Talvez ainda no liceu, onde o seu nome já só era dito em voz alta nas chamadas para os exames. Orfão de gente. Talvez mais tarde, depois da reforma. Agora estava definitivamente incógnito, como se fosse só um movimento que não se vê, uma sensação leve de presença que não importa. Dizia poucas palavras ditas. Era uma ida ao café, um pedir de conta, um desculpe, um faz-favor. Discursava em monossílabos por falta de interlocutor com quem dialogar. Quando chegava o carteiro tinha o seu momento. Ficava atrás da porta é espera que elas caíssem pela caixa-de-correio, buraco na porta da frente. Espalhavam-se no chão e demorava a apanhá-lhas. Uma por uma mirava-as de alto a baixo e imaginava o que lá viria. Havia dias em que lhe chegavam três ou quatro. Manuseava com cuidado. Revirava. Olhava com atenção o seu nome escrito. Destacado. E quando tinha a certeza que era mesmo para si, fazia deslizar a lâmina do abre-cartas pelo vinco do envelope, mordendo os lábios. Homem-destinatário que se fazia sócio de todos os clubes, de todas as causas, de mil-cartões de fidelização, só para se continuar a sentir pessoa. Hoje, finalmente, chegou o envelope que esperava há anos. Percebeu imediatamente quando o viu cair no ladrilho da entrada. O seu vínculo à existência não precisava mais de ser lambido na goma dos selos que lhe mandavam. Vinha sem remetente nem aviso de recepção. Uma carta do além.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Rua das Donzellas

Era Verão, tarde. Descias a rua com a tua elegância vestida, uma alça descaída, o vestido rosa pálido abotoado até abaixo excepto no último botão, e tu morena pintada de propósito para seres bonita. Debaixo do braço, uma pasta deixava ver umas folhas fugidias e apetecia avisar-te que iriam cair. Tu sacudias o corpo numa dança de passos que mal tocavam o chão. Eram sete horas mas estava ainda calor. Sentaste-te na esplanada para tomar um chá frio. Eu ia seguindo-te ao longe e não era só com o olhar. Entre nós dois esteve sempre ele. Aproximei-me de ti e senti um empurrão invisível. Não notaste. Agarraste nas folhas em letras tricotadas à mão. Caiu um papel e usei o pretexto para te abordar. Mas o som das minhas palavras não se fazia ouvir. Esforcei a voz, os lábios mexiam mas eu parvo e pasmo nem uma palavra dizia. Acerquei-me do personagem, furioso. Mas ele era imaterial, fantasma. Usei então o teu papel e escrevi. Perguntei, atrevido e só, se podia fazer-te companhia. Coçaste a orelha, ajeitaste os cabelos com uma leveza incrível, donzela do ar. Tricotaste uma resposta de sim. Na condição de que eu afastasse o ocaso dali. Fiz-me enorme, presente. Vertical. Apostei no momento, sovei o vento. Ficou sempre Sol, sem tempo, entre mim e ti. E tu viste-me e ouviste-me tal e qual o fazes agora. Donzela do ar, hoje, em nós só hoje, pela rua fora.