sábado, 13 de março de 2010

Travessa da Harpa

Demasiado séria para se brincar. Triangular, de cordas todas desiguais, no comprimento. Não na tensão, nem na espessura, que lhe dão a gravidade.

Toca-se com as duas mãos. Sente-se em todo o corpo. Conhecida desde a Alta Antiguidade. Dissimulada. Soa maviosa e é, além de flagelo, desgraça. Quando toca aos mais pequenos, nada mais pungente.

Não se lhe conhece outra rua. Jamais é homenageada. Harpa, além do óbvio, fome em alentejano.

sábado, 6 de março de 2010

Travessa das Anjinhas

Abriu a porta do quarto mais recuado da casa grande da travessa. Era lá que se guardava. A parte de fora de si, claro. A outra, essa não a largava nunca, permanente, no bater cadenciado de cada pulsar do coração. A de dentro era a essência que lhe permitia respirar a finitude de ter pele e poder sentir-se, carne, osso, vida. Às vezes precisava de se mudar por fora. Ou porque se tinha simplesmente fartado de assim ser, ou porque lhe aparecera um rasgão súbito que lhe trazia a urgência de ser outra. Ou só pelo gozo de se experimentar diferente. Mudava porque era chegada a hora, não havia necessidade de mais explicações. Avançou pelo quarto, closet de carapaça e epiderme, e olhou para as roupas de si ordeiramente penduradas. Havia-as de todos os feitios. Sérias. Sonhadoras. Determinadas. Amigas. Criminosas. Sensuais. Desleixadas. De várias cores. Rubras de paixão. Verdes de cansaço. Pretas de vergonha. Agora só tinha de escolher. Sentou-se num gesto de contemplação e surpresa perante a infinitude de possibilidadades. Respirou-se. Sentiu o ar da vida a sair-lhe. A entrar-lhe numa súplica de experiência. Levantou-se determinada e vestiu-se de longas asas brancas.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Travessa Maria de Alter

Um metro e sessenta e dois. Bem conformada. Redonda onde tinha de ser. Pernas bem feitas, andava graciosa e ampla. Cabelo negro, forte e ligeiramente ondulado, quando o deixava crescer e não o entrançava. Morena, sedosa, forte de frentes. Bem alinhada e perfeitamente aprumada. Pescoço elegante e uma cabeça absolutamente proporcionada. Olhos castanhos, umas ventas – perdoem a crueza – a lembrar a grande Silvana Mangano.

Era a grande mãe de Alter. Por isso lhe chamaram Maria.

terça-feira, 2 de março de 2010

Travessa do Açacal

João Vago era seu nome. Lembrava-se vagamente dos seus clientes. Naquela profissão não eram permitidas descrições precisas dos fregueses. Homem de poucas falas, mais valia prevenir, o que não tinha remédio depois de feito. Mais vale, língua presa que dependurada. Pela sua casa passava toda a sorte de gente. Do respeitabilíssimo oficial de cavalaria, ao salteador de caminhos, passando pelo castrador de animais, todos queriam que o Vago lhes afagasse os metais.

Hoje, o açacal deu lugar a um minimercado. As lâminas são todas descartáveis. O polidor de armas brancas – o açacalador – já lá não está e o mais parecido é o amolador ambulante que – dizem – agoira chuvas com a sua gaita. Arranja mais varetas do que afia facas. Não ganha para acompanhar um cego.

A descartabilidade está na moda, há demasiado tempo. Nem as barbas se fazem; e quando as fazem, não usam navalha. Ninguém faz açacaladuras, nem sequer vagamente. Será um problema de afectos?