domingo, 30 de agosto de 2009

Rua Amas do Cardeal


Quem eram essas senhoras que o cardeal tinha para si
Criadas, empregadas dedicadas que todos louvavam
Eram aias bem amadas que restavam por ali
Faziam doces e manjares que os comensais adoravam
Visitas que não iam pelo cardeal
iam mesmo para as delicias e faziam as delicias às amas do cardeal
Eram amas afilhadas de padrinhos gulosos
Eram senhoras delicadas de sabores gostosos
Os doces, os cuidados, os petiscos, o mais que interessa?
Essas senhoras embora senhoras de bem tinham almas humanas
Que tanto queriam ao cardeal para dele cuidar,
como o próprio as procurava para as suas penas curar
Seria por isso que antes do cardeal vinha o cura?
Tontaria ou disparate tudo se pode escrever sobre uma rua qualquer
Mas esta de que vos falo é uma rua mulher
Se por alguma razão parece a rua do cardeal
É por vicio de achar que é o homem o principal
Seja qual for a hierarquia está visto que eram as amas as donas da via
Ali se cozinhavam com requinte e saber os melhores toucinhos do céu e
outras celestiais doçarias feitas com muitas e muitas gemas
já que as claras eram necessárias para engomar os colarinhos
dos comensais requintados destes lugares honrosos
e, claro, dos cardeais e doutros que tais
que todos sabemos não fossem as amas não iriam lá mais.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Rua da Cal Branca



Artúrico Imaginário, o da Travessa, discorria, um dia destes, sobre as eventualidades da vida portuguesa. Como se trata de um Imaginário, nunca – mas jamais! – discorre sobre a actualidade. O único que o ocupa é, a eventualidade. Da sua cabeça emergiam uma série de improbabilidades. Porém, como se trata de uma figura muito respeitada em Évora, a pequena audiência, à sua volta no café, escutava embevecida como quem escuta alguém que poderá arrancar a sua existência, à vil tristeza do passar dos dias, um sobre o outro, sem que mais nada se passe, que o empobrecimento próprio e dos próximos. A televisão, ao fundo e por isso, em fundo, apresentava as declarações sempre fantásticas de um ministro, à saída da inauguração de um certame de pesca desportiva, perante o desinteresse de todos, excepto de Albino Realista e de quem o acompanhava, o presidente da distrital do partido do governo, com um pé engessado. Recorde-se que o empresário Realista é grande pescador de achigã; o seu amigo, político local, é mais da pesca, em geral.



Imaginário falava que lá para o Natal, o ex-conselheiro de Estado, Dias Loureiro seria reintegrado com a aclamação dos seus pares e que o Prof. Marcello quase explicaria na TV, não fora a sua escrupulosa obrigação de respeitar, “o silêncio dos conselheiros”. A outro, duvidando da velocidade da justiça pela amostra do caso Casa Pia, Imaginário garantiu que Silvino seria o único condenado. Os demais réus mandados em paz para casa e só não seriam convidados para desempenhar cargos de elevada responsabilidade, porque estão a atingir o limite de idade. A propósito, falou-se na indemnização do director de programas da TVI, num claro desvio às preocupações de Imaginário.



Os escândalos bancários estarão praticamente resolvidos na opinião de Imaginário antes da primavera. Só o administrador nomeado pelo Banco de Portugal para tomar conta do Banco Privado andará a contas com a justiça por erros processuais e provavelmente será detido preventivamente. Aos investidores que aplicaram o seu capital em produtos de elevado risco, o Estado, “num alarde de pujança financeira e solidariedade social para com os sectores mais dinâmicos da sociedade”, garantirão 100 % do capital investido com a compra dos activos tóxicos e com o maior “desprendimento na acção”, repartirão a mais valia eventualmente gerada, na esperada recuperação dos mercados. O presidente/fundador do BP era apontado, no “fervilhante meio financeiro de Évora” como um fortíssimo candidato à presidência da Caixa. Não da Caixa de Crédito Agrícola. Antes da grande, da propriamente dita, Caixa Geral de Depósitos. A dúvida – diz-se – está no modelo de governance defendido pelos dois partidos. Enquanto os socialistas defendem o actual modelo atribuindo claramente a presidência executiva ao ex-banqueiro, o PSD estaria mais inclinado em atribuir a Presidência do Conselho de Administração (Chairman), com funções de índole mais estratégica. A Imaginário caía-lhe melhor a segunda solução para não subaproveitar as ideias de alguém com quem ainda se diz, aparentado. Aliás, ele garantia, porque crê conhecê-lo bem, que os directores dos mais importantes media serão chamados à sua (dele) casa do Estoril para num pequeno-almoço, transmitido em directo pelas televisões, serem revelados os projectos para o banco de capitais públicos.



Ora a Rua da Cal Branca é por causa dos Imaginários desta vida. Foram os amigos do Realista, mais papistas que o Papa, que lhe puseram o nome. Afinal, eles tinham pavor que o Imaginário tivesse razão e não fosse a cal ganhar outras cores.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Travessa do Sol


Ele há enormes injustiças. Todos o sabemos. Mas esta, de atribuir ao Sol uma Travessa brada aos céus. É inclusivamente falta de educação bradar aos céus porque o Sol pode ouvir. E já não basta a injustiça em si, só com o conhecimento dos eborenses, era preciso também, chegar aos ouvidos das estrelas?

Em Évora, o Sol devia ter, no mínimo, uma auto-estrada! Uma auto-estrada que unisse as duas capitais alentejanas. De Évora a Beja e vice-versa. A Transalentejana.

Esta coisa, tão portuguesa, de, durante anos a fio, pensar o país pequenino e estreitinho como uma Travessa é o que dá: não temos a SCUT do Sol. Nem um estudozinho sobre o impacte ambiental e a fundamentação da não construção por razões económicas, do tipo: “em razão da protecção à extinção do ratão alentejano que virou ratinho pelo absentismo das culturas de sequeiro e consequente falta de alimento do simpático roedor, não se recomenda a referida construção a não ser numa estrutura suspensa que permita o atravessamento inferior dos bichinhos”.

Quando a preocupação com o investimento público e a dinamização das parcerias público-privadas (hoje ministro, amanhã CEO) estão na ordem do dia, impunha-se encarar seriamente a construção da referida via, complementada na sua faixa central, com a instalação de um TGV em mono via. Ou seja, pendular.

Assim, e só assim, se repararia a enorme injustiça feita ao Sol. O mesmo é dizer, à luz do dia, aos olhos de todos.

sábado, 15 de agosto de 2009

Travessa Torta


Há nomes enganadores e não falo em pormenores. A travessa tinha lutado para que não a chamassem assim. Porque a tratavam de Torta? Por não lhe verem o fim?

Ao caminhar pela rua, Cristina revia a sua vida como em filme. Entrou no passado de frente para trás e até ao invés de quando em vez. Ouvindo o desabafo da travessa, resolveu tentar entendê-la, dividiu as suas memórias em travessas tortas, que não eram tortas evidentemente, eram apenas invisíveis lá pró fim. Demorou alguns minutos nestes caminhos, saiu deles e voltou, voltou a sair e reentrou. Nunca se viu em palco. Reviu-se apenas lá, num tempo que teve, num espaço que ocupou, em momentos que amou em outros que desamou. Sempre sem precisar de ver o fim. Se o visse, o fim, não caminhava em busca, limitava-se a ir para lá. Cristina caminhara com a satisfação do deixa “ver o que há”. Isso dera-lhe o prazer da descoberta, e, satisfeita ou não, essa ficava feita; saltitava então para outra e já não se via o atrás, que a curva cortava-lhe o passado, bastava seguir em frente para outra temporada sem conhecer o traçado; passeou pela vida fora em travessas tortas, se assim lhe quisessem chamar.

Voltou para o presente e reparou que tinha gostado das travessas que calcorreou, e de tal forma percebeu que tinha fugido do palco, esse quadrado limitado, que o presente - relido o passado – ficou com mais significado. Nem questionou escolher aquela rua para si. Não te tratam mal, explicou à sua Travessa Torta, devias estar vaidosa: ninguém te pode percorrer com o olhar. Para te conhecer, têm mesmo de te atravessar.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Rua da Cozinha de Sua Magestade

Ora cá está a rua em que eu gostaria de morar. Porventura a rua mais importante de Évora. Hoje seria uma avenida! Teria sido alargada, repavimentada e ajardinada.

Com sorte. Está bom de ver! Se toca um presidente da Câmara a fazer jogging diário, comendo rebentos de soja e cenoura ralada o que teríamos seria a rua fechada para as corridas, certamente ajardinada e já com o nome mudado para – por exemplo – Rua do Peso Certo. Imaginem, o apresentador do Preço Certo a inaugurar a Rua do Peso Certo. Espectáculo!

Naquela cozinha trabalharam – no tempo das Altezas – os melhores artífices do seu tempo e, em part-time, uma brigada de freiras dedicada às sobremesas, onde pontificavam as suas barrigas. À época, gordura era formosura.

Diz-se que o famoso impedido do capitão – o da travessa – teria sido arregimentado nesta cozinha em dia de Conselho de Segurança, em casa da Alteza. Pura lenda. A cozinha de Sua Alteza fica onde vivem as Altezas, num palácio. Ali não havia nenhum palácio. A razão da confusão residia na brigada de freiras. Entre elas, uma sobressaía pela sua beleza e bons modos. Não era dotada para os doces mas adoçava a existência de Sua Alteza. E Sua Alteza adorava meter o nariz na cozinha!

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Rua do Cicioso

Não é que fosse por opção, nem por devoção. Um dia acordou e tinha-se ido. Perdeu o pio sem que nunca ninguém tivesse sequer diagnosticado o mais leve sinal de enfermidade. Aflitos, depois de uma semana inteirinha de sussuros imperceptíveis, os pais do João Frederico, lá foram a correr, de escantilhão, até Badajoz. Diz que lá havia um especialista nesses males e que se houvesse alguém capaz de resolver o problema ao petiz, seria o Dr. Ramon, Qual quê. Muitas pesetas depois e alguns sacos de caramelos dos Preciados, que a chata da tia Josefina teimava em encomendar, tudo na mesma. - Abre bem a boca rapaz. Mais. Agora diz ah... e só saía um leve zumbido, um tímido e apagado sopro enquanto as bochechas do João Frederico ficavam ao rubro de tanto esforço, Era como se o rapaz estivesse a encher um balão furado. Soprava, soprava e nada... - Outra vez rapaz. Mantém a boca bem aberta. - Agora diz eh!. Isso, muito bem, Dizia o Dr. Santiago com ar encorajador enquanto procurava nas profundezas da garganta do míudo, a razão daquele desaparecimento misterioso que nenhum TAC, Ecografia, Raio-X havia meio de descobrir. - Raios parta. Pensava de si para consigo, sem conseguir ver nenhuma luz no fundo do túnel. O Dr. Santiago era o décimo segundo especialista de renome a quem o João Frederico rumava agora em peregrinação semanal. Já iam na quarta sessão e aparentemente não havia nada mesmo a fazer. A boca do pequeno abria-se mas das entranhas só saía ar. Por mais que se esforçasse, concentrasse e empenhasse a boca do João Frederico mais parecia a de uma boga. Abria. Fechava e népias. Nicles. Nem o mais leve som que se assemelhasse a voz de gente. E perante o mistério e umas idas até Fátima, foi dado como encerrado o caso. João Frederico havia de ficar para sempre assim, sem cura nem remédio.
Os meses foram passando. Os anos. A falta de cabelo. Os netos. E um belo dia, já entrado na idade e de bengala encostada ao lado do sofá da sala de estar, veio-lhe uma vontade grande de cantar. Uma coisa incontrolável. Do fundo das entranhas. E assim que abriu a boca e fez soar, não percebeu como nem de onde, um fortíssimo acorde de tenor, atrapalhou-se e zás! Atravessou-se-lhe a dentadura postiça na laringe e em menos de um ai, perdeu para sempre o pio. Pobre João Frederico, uma vida inteira de silêncio forçado e no momento em que se foi a doença finou-se com a cura.



terça-feira, 4 de agosto de 2009

Rua do Escudeiro da Roda

Rodava a Roda rodava que da bola não gostava
Era a roda que rodava a bola só rebolava
O Escudeiro seguia a sua Roda e pregava:
roda a Roda roda, é uma Roda original
quem tiver engenho e arte venha ler a sua sorte.
Não é de ouro nem de prata, nem tão pouco de cristal
mas vale mais do que isso porque é muito especial,
transporta ilusões e poemas, paisagens e luares,
transporta talentos e génios, aquilo que desejares.
Artúrico Imaginário que passava por ali, ouviu e espantou-se,
cuidou que era o único a saber imaginar...
Interceptou o Escudeiro, intrigado:
- De que falas tu oh fidalgo, que roda é essa que guardas?
É a roda da sorte, você nunca ouviu falar?
- Que disparate!
saboreava já a magia que a tua história continha
mas com essa explicação lá se foi a fantasia.
Quem o manda a si meter-se?- disse o Escudeiro despachado
- esta história escrevo eu, esta rua é a minha, ora essa…
E orgulhoso explicou:
Já ouviu falar na bola de cristal? Pois isso é coisa do passado!
Agora é esta Roda que lê os futuros sonhados,
leva conquistas felizes aos audazes e ousados,
aos que nunca perderam a força, nem o poder da vontade.
Esta roda é viajante, que nem um profeta do bem,
basta olhá-la que enfeitiça, reveste as pessoas
dum alento, uma coisa nunca vista,
fornece uma energia tamanha, uma esperança tão espantosa,
que cuidar dela é para mim uma sorte fabulosa.
Regressava eu do passado.para me instalar aqui
quando a Roda que rodava resolveu rodar para mim.
E claro, foi dum golpe:senti logo especial este lugar pra que vim!

Rua do Capado

Lá em casa, gabava-se: “Só eu!” O porco, o galo e o cavalo: “Todos capados!” Assim proclamado, até fazem pena os animaizinhos. O porco por meras razões culinárias. O galo pelas mesmíssimas razões. O cavalo por razões de comodidade, pois junto com uma mulher feia é – segundo opiniões seculares e abalizadas – o descanso do homem!

Tomemos portanto como útil a castração do cavalo. Agora, do galo e do porco não parece razão suficiente, o interesse gastronómico, que é do que realmente se trata quando se fala de culinária. A gastronomia é uma actividade lúdica. Privar os animais de actividades lúdicas, por razões lúdicas, é uma prepotência inaceitável do homem. Não é de homem. É antes, de castrado.

De facto, não se conhecia ninguém que avalisasse a integridade física do gabarola. Nem mulher, nem homem. E de tanto proclamar, ganhou o epíteto de capado. Ou seja, castrado em versão popular. Ele e a rua!