segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Rua do Cicioso

Não é que fosse por opção, nem por devoção. Um dia acordou e tinha-se ido. Perdeu o pio sem que nunca ninguém tivesse sequer diagnosticado o mais leve sinal de enfermidade. Aflitos, depois de uma semana inteirinha de sussuros imperceptíveis, os pais do João Frederico, lá foram a correr, de escantilhão, até Badajoz. Diz que lá havia um especialista nesses males e que se houvesse alguém capaz de resolver o problema ao petiz, seria o Dr. Ramon, Qual quê. Muitas pesetas depois e alguns sacos de caramelos dos Preciados, que a chata da tia Josefina teimava em encomendar, tudo na mesma. - Abre bem a boca rapaz. Mais. Agora diz ah... e só saía um leve zumbido, um tímido e apagado sopro enquanto as bochechas do João Frederico ficavam ao rubro de tanto esforço, Era como se o rapaz estivesse a encher um balão furado. Soprava, soprava e nada... - Outra vez rapaz. Mantém a boca bem aberta. - Agora diz eh!. Isso, muito bem, Dizia o Dr. Santiago com ar encorajador enquanto procurava nas profundezas da garganta do míudo, a razão daquele desaparecimento misterioso que nenhum TAC, Ecografia, Raio-X havia meio de descobrir. - Raios parta. Pensava de si para consigo, sem conseguir ver nenhuma luz no fundo do túnel. O Dr. Santiago era o décimo segundo especialista de renome a quem o João Frederico rumava agora em peregrinação semanal. Já iam na quarta sessão e aparentemente não havia nada mesmo a fazer. A boca do pequeno abria-se mas das entranhas só saía ar. Por mais que se esforçasse, concentrasse e empenhasse a boca do João Frederico mais parecia a de uma boga. Abria. Fechava e népias. Nicles. Nem o mais leve som que se assemelhasse a voz de gente. E perante o mistério e umas idas até Fátima, foi dado como encerrado o caso. João Frederico havia de ficar para sempre assim, sem cura nem remédio.
Os meses foram passando. Os anos. A falta de cabelo. Os netos. E um belo dia, já entrado na idade e de bengala encostada ao lado do sofá da sala de estar, veio-lhe uma vontade grande de cantar. Uma coisa incontrolável. Do fundo das entranhas. E assim que abriu a boca e fez soar, não percebeu como nem de onde, um fortíssimo acorde de tenor, atrapalhou-se e zás! Atravessou-se-lhe a dentadura postiça na laringe e em menos de um ai, perdeu para sempre o pio. Pobre João Frederico, uma vida inteira de silêncio forçado e no momento em que se foi a doença finou-se com a cura.



Sem comentários:

Enviar um comentário