domingo, 17 de outubro de 2010

Praça do Giraldo (III)

Pergunto-me, às vezes, se a Praça do Giraldo não se deveria antes chamar, Praça do Salema. Como poderão ver – se comprarem o livrinho – Salema é cumprimento! Ora é precisamente no Giraldo que as pessoas se cumprimentam. Umas baixam a cabeça respeitosamente, outras estreitam as mãos, e cada vez mais, aparecem outros que fazem salamaleques. Para não falar dos que se cumprimentam entre dentes.

Foi uma tremenda injustiça toponímica da cidade não ter promovido o Salema, de Pátio a Praça, dotando-o de fonte, rotunda, pelourinho, estátua e tudo o mais a que tivesse direito.

Ainda se o Giraldo fosse Girado, vá! Aí gira, muita gente gira entre outra mais feia. Circulam peões e automóveis o que condiz com o putativo nome. Andam para ali às voltas e podem ficar girados, endoidecidos, mesmo malucos, no dizer do “povo irmão, brázileiro”.

Podia também chamar-se Geraldo. Parece gracinha de grafitador, esses grandes amigos dos edis, que lhes permitem programa e promessa eleitoral para depois, pela sua perseverança, trocarem nomes às praças, ora apagando lês ora trocando os is pelos és.

Mas assim sendo, o Salema fica a escutar o Janica da Salomé, que lhe enche o pátio de cantigas. Sorte dos dois: a daquele, agora que a vizinha – das redondezas – lhe devolve os salamaleques; a deste, se cantasse em Praça, só com a ajuda de uma brigada, tão grande é o recinto.

Praça do Giraldo (II)

Subiu os degraus de mármore gasto do número setenta e dois da praça central da cidade, a dois e dois, na ânsia de chegar à mesa a horas. Continuava excitado da véspera. Depois da fortuna lhe ter entrado nos bolsos das calças e lhe ter aumentado a conta.

Geraldo costumava levá-los de volta a casa cheios de raiva num vazio de cotão e chaves a tilintar, na nervoseira de ser madrugada outra vez. Ontem não. Limpara da mesa um emaranhado de cigarros inacabados de unhas roídas, de horas a fazer bluff, com as moedas a serem cada vez mais notas e as notas cada vez maiores. Até que lhe tocou o derradeiro cheque da desfortuna a seu lado, em forma de homem destroçado, e se fecharam as portas às 4 da manhã. Tinha sido em grande. Num crescendo de pares e trios e sequências de todos os valores, feitios e naipes. Mãos cheias. No fim, a derradeira sorte em fullen. De rainhas. Onde só faltou a de copas, como aliás na vida. Aquela que teimava em não lhe dar o prazer da desforra de solteirão por arrumar. Pouco importava isso agora. Tinha sido uma noite em grande. A sua noite. Mal conseguiu dormir, assaltado pelas ganas de voltar ao pano de feltro verde, gasto de cotovelos e nódoas do basfond.

Geraldo subiu agora os dois últimos degraus da escadaria. Respirou fundo. Ajeitou a aba do casaco, vestido de ar triunfador e cabelo em desalinho. Hoje seria em grande outra vez.

Mas não... Nada disso. O azar reservara-lhe uma surpresa. Um reviralho. Sem apelo nem agravo o mundo conspirava contra si. Logo hoje. Logo agora que tinha conseguido virar o jogo a seu favor...

No meio de tanto entusiasmo esquecera-se por completo, que hoje as mesas iam trocar as cartas e os naipes pelas escritas. Que a farra do calão a despropósito seria, por horas, feita de conversas de pompa e circunstância a bebericar em copos de pé alto as cerimónias de outros tempos. Hoje era dia de livros no velho palácio do setenta e dois. Não havia volta a dar. Sentiu-se baralhado de decepção. Mas durou pouco. Somente um ápice. O tempo de baralhar e partir e dar outra vez. O tempo de num piscar de olhos ver que a sorte afinal talvez não o tivesse abandonado.

A cartada hoje seria outra. Viu-a ao fundo da sala. Silhueta linda, numa sequência perfeita de vestido vermelho, cabelos longos, sorriso rasgado e taça na mão a transbordar uma luz vinda do além. Pareceu-lhe ver que ela lhe fazia um gesto lá de longe. Como que a dizer-lhe, de soslaio, que era hora de se sentar à mesa. Geraldo não evitou que um sorriso tímido lhe nascesse no canto da boca. Aproximou-se a passos lentos para não denunciar a mão. Tinha um bom palpite. Estava por tudo. Desta vez ia mesmo a jogo e até dobrava a parada.

Praça do Giraldo (I)

Regra geral o Geraldo era pontual. Parecia que o tempo lhe sobrava. Adivinha-se numa pessoa assim um personagem com a agenda cheia de vazios. No entanto a sua aparência desconfirmava-o, absolutamente. Vestia-se à pressa, não a correr, à lá pressa; à lá moda da moda da pressa; esta moda dos agoras, à moda do já! Geraldo, vestido de pressa mas com a maior tranquilidade nos gestos e no rosto.

Roupagem de pressa significa um casaco a voar gola enfiada para dentro, um cachecol a descair do saco, um casaco com os bolsos a transbordar, umas sapatilhas sapato que se pareçam com uns sapatos sapatilha, uma gabardine de ombro descaído pelo peso do “PC”... Regra geral o Geraldo era pontual. E nisso era um desigual.

Ao contrário da voragem da época e da sua contemporaneidade este personagem tinha tempo para tudo. Mais ainda, tinha uma atitude passiva, tranquila, redonda.

“Não, esteja à vontade, não tenho pressa nenhuma!” era uma frase que se lhe ouvia regularmente. Uma aberração, o tipo!

"Por favor não demore, estou atrasadíssimo...a conta, rápido, que tenho de ir embora!...olhe, desculpe, ainda demora muito??. Geraldo, à parte desta confusão.

E ali estava ele à esquina esperando pacientemente pelo seu amigo Tomé. Tomé aparecia-lhe sistematicamente pontual num atraso de 20 minutos. E Geraldo em geral aguentava.

Desta vez porém abalou. Faltavam 5 minutos para as sete. Viu Tomé bem ao longe correndo na sua direcção mas continuou, subindo, imperturbável, ignorando-o. O edifício estava à sua frente. Entrou. Tomé esbracejava, agitava em grito de espera.

Mas Geraldo desta vez não esperou. A cerimónia ía começar. A "Harmonia" abria as portas, os convivas entravam. Geraldo sentou-se, sossegado. Eram três os amigos que tinha à sua frente, e ainda o fotógrafo amigo dos amigos. A sessão de lançamento do seu livro ia começar.

Geraldo estava lá para os abraçar. Num abraço do tamanho duma praça. Enorme. Central.

Tomé alcançara a sala, procurava-o ansiosamente. Tinha o pavor de ficar só. Era isso sobretudo que os diferenciava. Tomé era nervoso, miúdo, pequeno. Geraldo era grande, combativo, e bonito sem pavor nem favor.

sábado, 2 de outubro de 2010

Ruas Ermas em papel















Nas livrarias a partir de dia 15 de Outubro. Selecção de alguns textos aqui publicados, ilustrados com fotografia a preto e branco. A não perder.