domingo, 17 de outubro de 2010

Praça do Giraldo (II)

Subiu os degraus de mármore gasto do número setenta e dois da praça central da cidade, a dois e dois, na ânsia de chegar à mesa a horas. Continuava excitado da véspera. Depois da fortuna lhe ter entrado nos bolsos das calças e lhe ter aumentado a conta.

Geraldo costumava levá-los de volta a casa cheios de raiva num vazio de cotão e chaves a tilintar, na nervoseira de ser madrugada outra vez. Ontem não. Limpara da mesa um emaranhado de cigarros inacabados de unhas roídas, de horas a fazer bluff, com as moedas a serem cada vez mais notas e as notas cada vez maiores. Até que lhe tocou o derradeiro cheque da desfortuna a seu lado, em forma de homem destroçado, e se fecharam as portas às 4 da manhã. Tinha sido em grande. Num crescendo de pares e trios e sequências de todos os valores, feitios e naipes. Mãos cheias. No fim, a derradeira sorte em fullen. De rainhas. Onde só faltou a de copas, como aliás na vida. Aquela que teimava em não lhe dar o prazer da desforra de solteirão por arrumar. Pouco importava isso agora. Tinha sido uma noite em grande. A sua noite. Mal conseguiu dormir, assaltado pelas ganas de voltar ao pano de feltro verde, gasto de cotovelos e nódoas do basfond.

Geraldo subiu agora os dois últimos degraus da escadaria. Respirou fundo. Ajeitou a aba do casaco, vestido de ar triunfador e cabelo em desalinho. Hoje seria em grande outra vez.

Mas não... Nada disso. O azar reservara-lhe uma surpresa. Um reviralho. Sem apelo nem agravo o mundo conspirava contra si. Logo hoje. Logo agora que tinha conseguido virar o jogo a seu favor...

No meio de tanto entusiasmo esquecera-se por completo, que hoje as mesas iam trocar as cartas e os naipes pelas escritas. Que a farra do calão a despropósito seria, por horas, feita de conversas de pompa e circunstância a bebericar em copos de pé alto as cerimónias de outros tempos. Hoje era dia de livros no velho palácio do setenta e dois. Não havia volta a dar. Sentiu-se baralhado de decepção. Mas durou pouco. Somente um ápice. O tempo de baralhar e partir e dar outra vez. O tempo de num piscar de olhos ver que a sorte afinal talvez não o tivesse abandonado.

A cartada hoje seria outra. Viu-a ao fundo da sala. Silhueta linda, numa sequência perfeita de vestido vermelho, cabelos longos, sorriso rasgado e taça na mão a transbordar uma luz vinda do além. Pareceu-lhe ver que ela lhe fazia um gesto lá de longe. Como que a dizer-lhe, de soslaio, que era hora de se sentar à mesa. Geraldo não evitou que um sorriso tímido lhe nascesse no canto da boca. Aproximou-se a passos lentos para não denunciar a mão. Tinha um bom palpite. Estava por tudo. Desta vez ia mesmo a jogo e até dobrava a parada.

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