sábado, 25 de setembro de 2010

Largo dos Colegiais

Não vinha lá chuva ainda. Só um prenúncio. Há dias que o tempo andava instável. Um vento suão a trazer lá de longe o deserto cansado de sol. Como se a terra não aguentasse mais o dourado das searas, as uvas a cair em cachos cheios, o milheiral a rasgar em maçarocas ainda verdes o pão das Beiras. Jerónimo sentou-se no banco de jardim do Largo, abatido pelo peso do céu que se carregava sobre os ombros. Suava como o pó do chão, enquanto sentia que o quente abrasador, com resquícios de cheiros a terra molhada, o enrolava e era a sua mortalha. Dentro dela, ele. Com os seus fragmentos de memórias longínquas em brasa. Fumava-se. E lembrava a cada fumaça nuvens de outras eras. Recordava o chegar a França, a salto na fronteira, com o comboio a seguir na oscilação contínua da trouxa para a viagem, a gastar o pouco que restava até chegar à Gare du Nord. Lembrava aquele desassossego de nada ter para além de braços. Anos de sol-a-lua de dias curtos esgotados na labuta. A dor nos músculos, crónica, de homem-máquina a acartar baldes na contra mão. Ocorria-lhe aquela memória de carris e andaimes que depois lhe entrava pulmões adentro. Expelia uma baforada longa. Profunda. E a seguir um peso de tosse anunciada, com vontade de cuspir a sangue a ausência de sonhos que não teve, pela falta da escola na urgência de ter casa e mulher e cama, que o levou para longe daqui a construir súburbios para outros. Agora, finalmente, estava de volta a pisar a terra-mãe de costas para a muralha. Fumou mais um pouco até se recordar na ponta de si, incandescente, da descoberta do amor. Essa era a parte melhor da sua nostalgia acesa. A mais saborosa e viciante. No meio das memórias. Quando o verde enchia ainda os campos, assumidamente molhados com as chuvas de Maio e toda a seara não era mais que uma quimera magnânima de abundância anunciada. Inalava então a Paris desse tempo jovem em passeios nos boulevards, nas sombras maiores dos domingos de fim da Primavera. Davam-se as mãos a falar na terra onde veriam os netos a crescer. E era nesta parte que Jerónimo sorria. A sentir-se completo pela vida cheia de fazer crescer prédios e homens a quatro mãos, com a firmeza que só tem quem soube agarrar o amor. Ergue-se então do banco, aligeirado do peso da realidade, enquanto deita para longe a beata e deixa que lhe entre pelo nariz o cheiro inconfundível da Évora da sua meninice. Sente-se finalmente em casa, enquanto se delicia a ver os colegiais a passar de capa, batina e mãos entrelaçadas a lembrar que irão construir novos homens e livros para morar.