quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Travessa da Bola

Trazia-te no fundo dos bolsos, bola amarrotada num vestígio de carta que perdera as letras de tanto me agarrar a ela. Não se apagaram, as palavras, antes sairam do papel, escorregando para o bolso e depois pernas abaixo até ao passeio. Senti-as descer, as letras, lentamente até à virola das calças, num percurso penoso de abandono e de partida. Senti-as depois, por baixo dos sapatos a ficarem espalmadas no chão. Perdendo o sentido, a lógica, toda a forma. Senti-te assim, derramada, a sair do papel. Mesmo assim continuava apertar-te despida da tinta, numa tentativa de ficares ali, para sempre em epístola fotográfica. Chapa de artista por revelar a preto-e-branco. Nua. Agarrava-te, nervoso, com os dedos calejados, ásperos, e fazia-te depois festas, com a ponta do polegar, como se o papel amarrotado, bola, que sentia no bolso, fosse a curva, redonda, do teu braço. Ao agarrar-te assim neste vestígio de ti, agarrava-me à memória do principio. Começo feito de papéis que nos escorregavam na ponta da caneta e se enchiam de coisas e paixão. Testamentos e juras. Cartas e promessas. Solfejo de músicas da alma em papel pautado. Trazia-te agora no fundo dos meus bolsos, vazia das palavras e das letras, sem te conseguir deitar fora, como se só por te tocar pudesses um dia viver para além do texto que se foi. Verbo feito carne outra vez.

1 comentário:

  1. Promete que continuas a solfejar as músicas da tua Alma que desespera por se mostrar ao mundo, para além de ti.
    Beijos

    ME

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