domingo, 14 de fevereiro de 2010

Travessa da Pulga


Ele. Estás nas minhas mãos há semanas. Quase terminada. Só mais uns retoques. Limar-te aqui o seio. Polir-te as madeixas. Repuxar os olhos abrindo um pouco mais a sobrancelha. Aprofundar-te a curvatura do pescoço, ali à direita. Acertar a geometria da clavícula para que se reforce o porte altivo. Não tarda o teu coração vai bater. Sinto-te real. Mais real do que tu aí à minha frente, que te emprestas, diligente, para me servir de rascunho à criação...
Ela. E eu vejo-te olhar para cada milímetro do meu tronco nu há mais de um mês e tenho esta estranha sensação de ser eu o objecto e não a pedra tosca em que já moldaste as minhas formas. Há semanas que aqui chego pontualmente às 9. Sento-me na cadeira das costas baixas, no centro deste estrado, numa sala coberta de pó branco que me entra pelo nariz. Descubro os ombros. Destapo os seios quando me pedes. Sigo-te sempre os gestos quando pegas no cinzel. Raramente trocamos palavras...
Ele. Começaste por ser pedra tosca. Disforme. A reflectir esse esboço-vivo-ideia-real à minha frente chamada Ilda. Ilda Pulga. Estranho nome de criatura a baptizar a beleza roliça e cheia. Escolhi-a entre as mais bonitas para que tu saísses mais-que-perfeita. Pretérito transformado em futuro de pedra eterna. Anúncio no jornal. Um desfile de mulheres. Ruivas. Morenas. Altas. Com as vontades a despontarem dos decotes. Faces rosadas a adivinhar-me o desejo escondido atrás do meu olho de escultor-artista...
Ela. Gostei da forma como reparaste em mim madura e me fizeste sentir pela primeira vez mulher. Quis-te naquele momento todo para mim...
Ele. Já tinha escolhido o mármore mais imaculado. Alvo e sem veios, para poder ser eu, imperturbável, a criar cada linha-contorno à força do meu desejo. Quando te pedi, Ilda, para tirares o casaco soube de imediato que iria sorver cada pedaço teu e forrar com a tua pele uma vida eterna...
Ela. Vi-te ensandecer de desejo, não por mim, mas pelo que te saía pelas mãos. Autista da beleza da mulher pulsante, escravo em fixação mórbida pela pedra mármore. De nada serviu a minha lascívia, a minha vontade hirta de bicos rosados. De nada serviu a luz do meio-dia que me lambia o tronco nu a clamar por ti...
Ele. Há semanas que só tenho olhos para ti. Festejei cada conquista do cinzel a tirar-te o que estava a mais, num prazer indescritível de te recriar a escopo. Madeixas a cair do cabelo apanhado. O decote fogoso. O lenço a envolver-te a cintura esguia. Vontades feitas formas. Até chegar aqui. Ao momento em que um só sopro te podia fazer viver...
Ela. Perdi-te. Ficaste com o que menos me interessava. A forma. A minha forma de empréstimo a moldar os reflexos da luz na pedra branca. O que menos me interessava. Quando era a minha alma toda que te queria ter dado...
Ele. Acabo o último polimento. Obra acabada. Alivio. Olho-te pela ultima vez, Ilda, e sorrio porque te consegui trazer inteira para ela. Agora sim, viverás. Viverás eternamente.

1 comentário:

  1. Fantástico, bonito, sensual...Tens que escrever um livro, dois, três....a solo!

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