terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Rua da Alcárcova de Baixo

A soleira da minha porta é um cais à frente de um farol. Os degraus descem para o leito feito de pedra negra que reluz. Não dá para a foz do rio mas é como se desse. Passam por lá pessoas e não navios. Para o caso tanto faz. Navegam. Derivam. Pouco importa. Habituei-me a ouvir no sino da Sé um apitar de navios a sair a barra. Toda a noite. Adivinho-lhes as rotas. Aquele vai hoje para as Américas. São 18 dias até chegar. Aqueloutro ruma a Luanda. Há-de fazer viagem na esteira das caravelas. Numa repetição eterna de correntes assisto, impávido na dormência delirante de noites longas, ao ondular das vidas que se faz sobre espuma e sal. Gentes-barco que se fazem à aventura chapinhando nestas ruas ermas sem sentido. Hoje, da minha vigia assisto, petrificado de surpresa, ao espectaculo das águas que galopam, numa fúria de inverno adiantado, a reclamar o que é seu. É noite de borrasca.Tempestade sem gaivotas. Águas a rugir na alcárcova levando tudo à frente numa revolta a repique no sino maior. É hoje que chegam os navios. É hoje que partem finalmente.

1 comentário:

  1. Al de árabe...alcova...de mistérios desnudos. O rio que corre nas veias, mas também a água ou seara de ilusões...uma dança entre mim e ti na minha secreta imaginação. A terra e o mar que se fundem nas janelas de olhos que chovem por vezes. Lindo.

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