domingo, 21 de fevereiro de 2010

Travessa do Pão Bolorento


Lá no fundo de um baú qualquer tenho deixado, na conveniência das bolas de naftalina e jornais antigos, as minhas frases mais certas. Dobro-as com toda a paciência e escrevo no verso, com caligrafia de avó, uma data. Alguém miúdo as descobrirá um dia em sobressalto, no meio de fotografias gastas e bilhetes de espectáculos de gente antiga. Adivinho-lhe um sorriso gaiato a despontar na cara. Excitação de tesouro de laçarote. Boca aberta quando, depois da surpresa ao colo, se sentar de pernas cruzadas encostado à parede do sotão a mastigar o que se esconde em todas elas. Comecei a passar-me toda para papel, quando há um ano me assolou um medo que se me gastem as palavras. Decidi então que as iria poupar, para que as não levasse o vento, e comecei a encaixotá-las a todas. Vesti-me então de idade e assumi-me velha no esquecimento à tarde da conversa da manhã. Aceitaram-me assim. Deixaram-me em paz na minha repetição e na vulgaridade do desinteresse de comentar na rua o tempo que faz e vai fazer. Reservei-me, falando quase só em monossílabos. e assim fiquei inteiramentemente disponível para a memória das minhas importâncias. Escrevi-as quase todas. Escudada pela senilidade aparente de meias trocadas de duas cores. Hoje acordei ao avesso e decidida do contrário. Com a vontade de abdicar das minhas certezas. Que pão pode deixar sementes? Que pão bolorento pode saciar fomes futuras? Subo até ao sotão. Desembrulho-me em todas as palavras que guardei e mato a fome com a frescura do pão vivo que fiz para mim. Hoje decidi-me a aceitar para os outros o incerto. Vou deixar o baú vazio das minhas convicções para que o gaiato de amanhã lá possa guardar as suas sementes. O pão da vida.

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