quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Travesssa de Roma


Rafael pensava sempre naquele homem-equação antes de se aventurar na tela. Ocorria-lhe aquela imagem quando começava a afiar as ideias, a faca e lascas, na ponta do lápis de grafite. À sua frente o cavalete já preparado com o vazio insuportável em formato setenta por cem. Sobre a mesa uma infinitude de pincéis, esponjas, tubos e uma paleta com os restos do passado, em histórias secas que não chegaram a ser. Concentrava-se no emaranhado de linhas e conceitos, que haviam de vir, enquanto iniciava um diálogo surdo com aquele homem que lhe ocupava agora a cabeça e as mãos. Era uma obsessão recorrente. Um vício, mesmo. Sempre que se preparava para atacar a tela em branco não resistia e puxava à sua memória o desenho primordial, ícone da perfeição - o Homem de Vitruvio. Primeiro esperava que ganhasse definição e contornos até ficar circunscrito e arrumado na exactidão do seu círculo-quadrado. Via-o tomar as proporções certas, magistrais, de braços e pernas esticados numa tangente universal. Divertia-se depois a fazer com que aquela figura começasse a andar à volta sobre si com as veias do pescoço a dilatar. No início o movimento era equilibrado, fazendo daquela roda-viva o esplendor possível da beleza. Fechava os olhos e insistia até que a imagem começasse a girar com velocidade. Mais velocidade ainda, até que os cabelos-longos-caracóis se abrissem em juba e as suas 4 pernas ganhassem vida própria e transformassem, num ápice, aquele homem-músculo num animal de circo. Amedrontava-o esse instante-fera antes da cena passar ao movimento perpétuo que a seguir o hipnotizava. Vinha-lhe então o enjoo e sabia que a partir desse instante passava ele mesmo a ser todo esse rodopio imparável. Rafael precipitava-se na vertigem da fusão e arrepiava-se, com o palpitar na pele, das proporções exactas da matemática dos corpos. Sentia-se fórmula. Possibilidade infinita. Corpo transcendente. Estava alucinado pela pressa dos pensamentos sobre si mesmo. Era finalmente no centro de tudo. Tomado agora pela clarividência, sabia exactamente o que fazer a seguir. Parar e libertar-se uma vez mais dos seus limites de quadrado-círculo. Via-se estático de braços abertos, pernas hirtas, e então esticava um pouco mais as mãos para agarrar com força a circunferência. Puxava-a toda para si até se partir. Aí enrolava essa linha-circulo num novelo, até não haver mais raio que se visse. A seguir passava ao mais difícil. Dar a volta ao quadrado. As forças vacilavam-lhe sempre quando lá chegava. Um desafio de Hércules esse de sair da caixa. Distendia-se todo no auge das suas energias e partia um dos vértices até sentir o ar fresco a entrar-lhe pelo desalinho dos cabelos. Puxava determinado pelas quatro linhas e juntava-as de seguida às outras. Já não lhe restavam mais limites. Ele era agora a equação total que lhe permitia recriar-se até ao infinito. Depois pegava no seu novelo e começava a desfiá-lo até ser uma linha recta até ao fundo de si. Metia-a com cuidado no interior do lápis acabado de afiar onde todas as suas limitações-circulo-quadrado seriam agora todas as suas possibilidades em grafite. Era com elas que iria desenhar. E nesse exacto momento saía para a tela e pintava a imensidão da sua alma.

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