terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Rua do Escrivão da Câmara


Vou-te escrever até que o tinteiro se gaste. Até que não haja já mais nenhuma gota azul para sair, certeira, pelo bico do aparo e se transformar em palavras de amor. Aposto que já reparaste que voltei ao passado das canetas de tinta permanente, aparadas a ouro para escrita fina de salamaleques e cornucópias. Gosto deste romantismo senil. Desta prosa que me sai com patine emprestada pelo personagem que levo à cena. Dá-me gozo esta coisa de cofiar os bigodes de século dezanove, que também deixei que me crescessem, e que me dão agora este ar aristocrático de alfinete de pérola a rematar a gravata de seda. Penso em ti. Penso-te ali na fotografia que emoldurei com um passepartout exageradamente grande para que me lembrasse do oásis que és, quando te vejo pequena, de monóculo em riste. Reclino vagarosamente a cadeira e sinto o prazer no ranger da madeira antiga a dar de si. Tranquiliza-me este som familiar que ouvia em pequeno no escritório de meu pai. Repouso as mãos no tampo e deixo que os dedos afaguem ao de leve o polimento. Vejo-o novamente ali nos meus gestos repetidos de mãos iguais. Ajeito o mata-borrão cheio das memórias difusas dos meus avós que não conheci. Decidi agora que a minha existência seria isto de ser antigo. Deixei que o romantismo descesse sobre mim e me adornasse o cachucho que trago de herança falida nas armas das duas águias, hoje embalsamadas, e um torreão, agora uma ruína Vesti esta pele de jaquetão e polainas para convenientemente ilustrar as vontades de te cantar numa elegia. Reclino-me um pouco mais. Estico-me confortável e deixo que me estalem as falanges à sua vontade. Precisava deste teatro ao espelho para te trazer à vida. Para te trazer da ponta-da-língua à redondilha da estrofe. Escrevo-te os poemas que nunca ousei dizer. Pensar. Porque sei que os não lerás. Porque agora sei que os não escrevi a tempo. Endireito-me de supetão. Hirto. Volto à escrita. Deixo que rebentem sílabas. E versos. E que me saiam pela ponta do tacto todos os sentidos com que nunca te toquei.

2 comentários:

  1. Não preciso chegar ao fim e ver o E, reconheço-te! Aplaudo, fico muito feliz que tenhas voltado a escrever, sabes que sempre te incentivei. Chego até a achar que é mesmo do melhor que sabes fazer. Ainda guardo uns quantos manuscritos, um dia com tempo passo-os e passo-tos! Este é lindo!

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  2. Não sei se é a melhor coisa que sabes fazer como diz o outro comentário, acho é que a escrita faz vir ao de cima o melhor que há em ti!
    bj Su

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