domingo, 27 de dezembro de 2009

Rua da Zanguella


Tinha aquele hábito de entrar de rompante, porta a dentro no café como se o espaço fosse seu e as pessoas peças sem energia aparente mas que dia sim dia não transmutavam. Naquela vez, ia mais decidida do que nunca; elevou o punho à laia de microfone e disparou: “é tudo matemática, é tudo aritmética, física, metafísica, astrologia ou até poesia para quem o quiser, desde que se conheça com sinceridade a filosofia”. Micaela lia os rostos, indiferente, pose digna, teatralizava: “formas e fórmulas, molduras, padrões, etiquetas, levaram anos a construir, deram trabalho a conceber, para que qualquer de nós resolva estragar a maquilhagem da realidade a seu bel prazer”.
Elevou-se, trepou para uma cadeira e gritou: “ouçam o que vos digo: quem julga que basta decidir ser livre, desengane-se, pois agonizará para sempre, e dolorosamente”. Os clientes do café olhavam estupefactos, não queriam assistir a desconstrução alguma nem tão pouco ouvir aquela maluca. Tentaram distrair a atenção, retomaram as conversas, as leituras, os cafés, as alegrias.
Micaela era vistosa. Vestia saia justa preta, botas altas da mesma cor e uma garrida camisolinha listrada. Das orelhas pendiam uns brincos histéricos em latão dourado e as pestanas eram semi-círculos de gata a abrilhantar os olhos miúdos. Mas, se dava prazer olhá-la, melhor ainda era ignorá-la. Só que ela continuava: ”eu, colecciono rótulos, amo estereótipos, escolho estilos e enquadro-me por direito à normalização”. E dito isto, sem dar tempo às pessoas de ripostar, pôs-se a circular de cliente em cliente alterando o mais imediato. Retirou os livros ao rapaz do canto e pousou-os na mesa da senhora velhota, despiu a boina da adolescente e vestiu-a ao homem metro encostado ao balcão, tirou o xaile freak à morena e colocou-o aos ombros da loura executiva…saltitava, chacoteava e ria-se nesta dança de improviso veloz que interrompeu bruscamente. Suspirou cansada como em qualquer actuação e imobilizou-se. Estática. Séria. Até que por fim fez uma vénia alongada. Os clientes do café da zanguella esperavam. Deixaram escoar um minuto comprido. Todos se entreolhavam como que aguardando o sinal dum maestro imaginário e de súbito num coro sincronizado soltaram imprevistas gargalhadas que só pararam para substituir por palmas e pateadas.

Micaela lança então um sorriso rasgado e caminha para a saída acrescentando em tom de apoteose “se tivessem juízo saíam todos; porque tudo o que vêem é mentira, o que ouvem, o que lêem, é mentira, até este café não existe”.
E partiu sabendo perfeitamente que nem sequer tinha ali entrado.

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