sábado, 5 de dezembro de 2009

Rua do Cano


Contavas-me que em miúda quando ias em passeio de automóvel com os teus avós, atravessando aldeias, campos e abandonos, invejavas as raparigas que vias à beira das estradas. Admiravas as cores garridas dos seus trajos e questionavas invariavelmente para onde iriam quando te pareciam tão afastadas de tudo ali perdidas no meio daquele espaço imenso. Imaginavas contudo uma vida sã estampada naquelas bochechas geralmente rosadas e cheias. Confundias ruralidade com liberdade, simplicidade, lareiras e prazeres donde partias para o que julgavas ser a felicidade. Demoravas horas de nariz colado ao vidro viajante, inventando histórias de família, feiras com bailarico e parcerias de amor. Sempre com aquela ideia da concertina agarrada à tua imaginação.

Chegavas a casa nauseada com a alma empurrada para a realidade que trazias do passado, num amuo descabido pela sorte que envergavas. Desejavas atirar o teu berço pelo cano abaixo e amaldiçoavas as raízes que nascidas contigo empurravam as ideias para o topo do sobreiro que crescia em forma de aqueduto no teu próprio jardim. Circulavas lá por cima e dançavas nos seus ramos com sorrisos parvos, distraídos, em trejeitos alternados com fantasias em holofote sobre esplendorosas acrobatas de circo. Duma forma ou de outra o movimento aparecia-te circular, simétrico, labiríntico. Sempre suficientemente veloz por forma a roubar-te tempo para que te incomodasse menos assim. Nunca percebeste que força era essa, porque querias muito esse tempo para te debruçares sobre o acaso do teu espaço que também era enorme. Era, julgo eu, a força da berlinda a perder vantagem para a da acomodação, obrigando-te a virgulas e reticências já que te vias incapaz de a contornar. Eras dura contigo e criticavas-te pela inutilidade desses pudores. Empurrando-os num ápice de seguida pelo cano abaixo.

Nessas alturas de poesia abdominal engolias o pó das memórias e caminhavas horas a pé para te limpares desse lado que eras tu. Corrias contra os ventos até à expulsão extrema dos fantasmas que conseguias, assegurando somente a permanência do que realmente valia a pena.
E aí bailavas com fluidez sobre as palavras, temperamentos ou acordes junto aos amigos do teu próprio circo. Engrandecias liberta de padrões e manias, transformavas-te em bailarina de desejos sonhados e partilhas uníssonas. Saltavas do sobreiro patriarca e descias à terra como se subisses aos céus.

Agora, transformaste as memórias em música e nunca mais te surgiu a ideia inútil e estúpida de as deitar pelo cano abaixo. Não mudou grande coisa, deliciaste ainda ao som da concertina; apenas lhe acrescentaste umas teclas, uma maior caixa de fole, umas novas vibrações e divertida gingas o corpo ao som do acordeão.

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