quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Rua da Misericórdia

O que eu te queria mesmo ter dito, ainda há pouco quando falámos ao telefone, é que me fazes uma falta do caraças. Sempre a fizeste. Mas não. Enrolei-me outra vez em falinhas mansas, diz-que-disses, banalidades, histórias-de-outros, lugares-seguros, e fugi uma vez mais ao óbvio. É sempre assim. É tão visceral esta vontade, que de tão grande me emudece sempre que a tento pôr cá para fora.

Quantas ocasiões tivemos em que não me atrevi. Olhos nos olhos até me faltar a coragem e a voz. De sapatos na mão depois de dançarmos os quatro até cair, com a manhã a despontar na planície. Na comoção de um velório à porta da igreja de São Mamede, a chorar-te nos ombros as saudades partilhadas. Enroscada no sofá dos jantares de amigos com o frio a fazer-nos sentir de perto o respirar, enquanto os outros se aqueciam de pé nos cubos de gelo dos wiskyes com água-lisa. E também noutras estações. Na cumplicidade das férias a casais com as toalhas coladas lado-a-lado a divagarmos nos livros ainda a meio. Noutras latitudes com lareiras das semanas de neve, quando todos já tinham ido para a cama e tu ficavas para a última brasa no pretexto de não me deixares sozinha com o Baileys. E na urbanidade de Lisboa, a seguir ao filme certo que estreávamos, porque estavamos condenados a ser os únicos que tinham paciência para coisas faladas em francês. E também doméstica, depois do teu Sporting vencedor, em que aparecias lá em casa para celebrar e te deixavas ficar para além do Francisco e das suas horas certas de deitar. Muda no beijo da despedida, em que deixava escorregar a boca para te tocar o canto húmido dos lábios, sôfrega que rebentasses tu com o silêncio. E sempre, sempre, quando me agarro, como hoje, à tua voz lá longe e espero o momento certo de tossir este sufoco que me arranha a garganta. Sinto que me esgotei nas oportunidades de tantas maneiras para encontrar a ocasião certa. A pirueta, o salto-mortal ou simplesmente o abraço, para te vomitar esta vontade incontrolável que me aperta-espartilho o peito, desde que te conheci gaiata no sétimo ano dos Salesianos. Nunca tentei e falhei sempre.

Queria tanto conseguir falar-te dos equívocos de uma vida inteira a aturar-me a mim num papel que não deveria ter sido o meu. Dizer-te que os filhos que pari era suposto serem os teus. Nas noites de idas às urgências era a ti que eu imaginava a levar-nos à porta e a esperar do lado de fora atafulhado em SGs. E nos programas de idas ao circo era a tua língua que me apetecia
a lamber-me os dedos de algodão-doce-besuntado. Nos brindes das passagens de ano as tuas passas que eu queria na boca. Como eu gostava de te conseguir falar destes papéis trocados, em que sempre te suspirei protagonista e não este quase-figurante sem direito a aparecer no genérico. Dizer-te que no casamento da Mafalda eras tu que a devias ter levado ao altar engalanado. Na morte do meu pai era a ti que cabia limpar-me as lágrimas de todos os rancores e coisas por confessar. Queria-te relatar minuto a minuto uma vida amargurada porque era suposto ser o teu nome a aparecer nos envelopes, que ainda vêm parar por engano ao 5º Direito, passados tantos anos. Gostava tanto de te conseguir falar de tudo isto aqui sentada à mesa da cozinha, enquanto espero que a chaleira apite uma vez mais. Nunca consegui. Falhei sempre.

Desligo a chamada irritada e revejo novamente estas cenas do meu teatro-vida, que sobe ao palco num recorde de exibições inigualável. Sem ponto. Sempre com uma branca na parte decisiva do enredo. Suspiro na esperança da vez em que o pano caia e, depois dos aplausos breves, te encontre-de-flores-na-mão na desmaquiagem do camarim.

Pouso o telefone. Deambulo na infantilidade de achar que, por artes-mágicas, me irás bater agora à porta, de malas na mão, e ocupar o teu lugar na cama e no elenco do cartaz. Pressinto a tua solidão. Confirmo a minha. Agarro novamente o telefone decidida a voltar à cena, mas não consigo que me saiam as primeiras palavras pelos dedos. Perco as forças e fico-me, como sempre, na inconsequência do pensar.

Tem misericórdia de mim. Tem piedade. Liberta-me desta agonia. Põe-me tu as palavras e os teus beijos na boca e rasga-me o pano para que a peça possa finalmente começar.

5 comentários:

  1. E
    história-muito-muito-bonita
    é esta a angústia que sobra
    das palavras que não foram ditas
    gestos que não forma vividos
    estados de alma que não se atrevem a ser sonhados
    um quase vazio.
    mónica

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  2. Constato, não sem um esgar de simpática zombaria, que também te foge o pé para as hipérboles.

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  3. E.
    Lindo! E saberes tão bem exprimir como sente o "outro lado". Adorei
    R.

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  4. Esta é potente...E transversal a quase todos o ser humano que se preze. Quem é q não tem/teve um "filme" destes. A diferença é que alguns mesmo q não o tenham vivido, sabem contar com emoção. E digo-te sem ironia nenhuma que tenho uma lágrima no canto do olho.

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