sábado, 29 de janeiro de 2011

EXTRA - Lisboa Largo do Chiado (II)

Gostava de se passear já tarde por ali, quando só havia um ou dois vagabundos a cirandar a estátua do Chiado. A animação era um pouco mais acima, entrando pela rua do Norte no emaranhado dos grafites, com as minis a escorrer à porta das tabernas e um ruído de fundo com cheiro a vinho tinto e fado. Preferia o lado de cá da fronteira do Camões onde a prosa era mais serena a estas horas. Não vinha fazer nada de especial. Vinha para se escutar na calçada em frente à Brasileira e encontrar por ali os poetas e os artistas que ele sabia costumavam vir tomar café àquelas horas. E era naquele sossego tardio de pombos de cabeça na asa que os começava a escutar ao ouvido. Nunca falhavam o encontro, já que não tinham melhor sítio para onde ir. O Bocage era sempre o primeiro a abrir-se mais as suas obscenidades numa algazarra que atraía os outros. Eram as pancadas suficientes para que se juntassem muitos a seguir, em seu redor, sem século definido nem género nem prestígio que os distinguisse. Eram iguais como as suas letras mortas. Etéreos como as frases que ainda se cantavam ou se diziam arrastadas a altas horas nas tertúlias mais ilustres, ali nos clubes e nos grémios do lado. Ele gostava de os ouvir. De todas as formas e feitios, sem preconceitos literários ou intelectuais de jornal de sábado de manhã. A sua crítica era a gargalhada ou a lágrima que se soltava amiúde sem ninguém ver nem escutar. Comovia-se com as pieguices e proezas de quinhentos, os dramalhões de novecentos e a crítica acutilante dos setentas. Por vezes ficava meditativo a pensar num ou noutro verso mais tocante. Outras, enlevado pela paixão impossível. Pela morte. Pela sugestão do Pessanha. A solidão do Nobre. O real do Cesário. Passeava por todos eles sem nenhuma ordem nem cronologia. O simples prazer de os ouvir e tê-los só para si enchia-lhe o écran dum cinema que só com versos se pode ver. Havia noites em que ficava sentado ao lado do Pessoa na esplanada, horas a fio, sem chamar mais ninguém, até ver o rio da sua aldeia a ficar maior que o Tejo. Mas geralmente era à volta da posse de convite às histórias do poeta de Évora que ia matar saudades afogado em nostalgia. Com rio ou sem ele pensava na sua terra e em como eram belos os versos lavrados pelo arado. Pensava no Manuel da Fonseca. No Régio. No Caeiro e vinha-lhe ao nariz o cheiro a terra molhada com que se fazem nascer as searas. Sem dar por isso o Chiado passava a ser montanhas e planícies e florestas e o mundo todo que se torna todo mais real na caneta dos poetas.

NOTA: Texto escrito a propósito da apresentação do livro em Lisboa no dia 26/1/2011.

Sem comentários:

Enviar um comentário