sábado, 29 de janeiro de 2011

EXTRA - Lisboa Largo do Chiado (I)

Mariazinha subia a Rua do Alecrim com a agilidade de quem vai a descê-la. Passo ligeiro e hábil como se tivesse peso de pena de pombo. Levava um guarda-chuva que segurava deitado, e trauteava a música da mariquinhas, gingando um pouco à esquerda e à direita. Ao chegar ao topo, largou a casa, a mariquinhas, o peso pluma e encostou o peso do corpo à pega da sombrinha. Boa tarde Chiado, boa tarde poetas. Artistas e livreiros, actores, cantores, e pedintes, rapazes, raparigas, velhos que não precisam de género, gente que também não, gente nova e gente suja, gente asseada, engraçada e sem graça, gente de feiura e gente bonita, senhores e catraios, boa tarde, tarde de chiado cheia de gente.

Mariazinha tinha a força de um fado.

Olhou para a escultura do Camões cumprimentou-o como se faz aos grandes e sentiu sobre si os olhares variados a que estava habituada; fossem de agrado, de carinho, de compaixão, incidiam no seu peito enorme, mas nem interpretava as expressões que via apenas lançava um sorriso rasgado de mulher. Mariazinha de alma danada, tonta, louca, ou sábia, ninguém pode sabê-lo porque tudo é o mesmo e se confunde. Rodopiou o corpo à volta da sombrinha e dali seguiu para a Igreja da Encarnação. Via-se-lhe os pés por baixo da saia comprida bem calçados em bota preta, no fundo ao fundo ia bem arreada. Cumprimentou os amigos dos degraus de pedra, fez-lhes uma festa materna, entrou, ajoelhou-se à entrada baixou a cabeça fechou os olhos e rezou. Permaneceu imóvel vinte minutos seguidos e quem por ela passasse nem um pio lhe ouvia. Mariazinha rezava baixinho com a mão no coração e a vida na mão. Ao Chiado voltou lavada, e sorridente espreguiçou-se atravessou a rua instalou-se na Bénard e escarrapachou-se na cadeira da esplanada.

Estava em casa. Sabia que já não era a mesma coisa, a sua casa, não tinha idade mas tinha o tempo, o momento, e o desenquadramento. E o guarda-chuva que a protegia dos poetas lingrinhas.

E mais? era Domingo e a tarde estava brilhante e luminosa e aquela agitação apetecia. E era hora de se sentar no chiado, gozar o chiado e respirar o chiado; conversar, tagarelar, ouvir, contrariar, opinar, rir, e discutir. Com fôlego e chama. Para isso fez o esforço que podia. Que ainda conseguia. E amava. E sentia. E ainda bem. Que foi para isso que se inventou “o” Chiado.

NOTA: Texto escrito a propósito da apresentação do livro em Lisboa no dia 26/1/2011.

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