quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Rua do Alfeirão



Calções de peitilho aos quadrados azuis e encarnados. Camisa branca, de manga-curta, engomada a rigor pela Maria Bernardina. Os joelhos todos escalavrados e as meias azuis a teimarem em escorregar pernas abaixo do elástico já gasto. Um míudo igual a todos os outros, a preparar-se para um futuro imaginado pelos pais, em inquéritos às notas à volta da camilha no fim de cada período.

- Vê lá que tens de estudar para ser alguém. Joaquim era dócil, bem comportado e um menino responsável como poucos. Gostava de olhar pela janela do quarto, em bicos de pés, e observar os meninos de rua a correrem, sujos, por ali abaixo, num desassossego de falta de gente a tomar conta. Deliciava-se a imaginar um mundo maior que o jardim da casa grande das janelas verdes, ali na rua do Alfeirão, livre dos colarinhos brancos e horas certas para o lanche.

- Menino Joaquim despache-se, gritou a velha Matilde, - que já está na hora de ir ao barbeiro. Despache-se que estou aqui à sua espera e não vai querer arreliar a avózinha, pois não?!
Joaquim deu um salto e rodopiou sobre si mesmo. Ia finalmente sair até à barbearia do Mestre Ignácio ali no número 7 da Rua do Imaginário, onde tinha o regalo da quinzena, enquanto esperava pela vez de ir para a cadeira vermelha e ser recebido em grande de tesoura em riste. Era ali, naqueles brevíssimos minutos, que conseguia folhear a Revista Flama, sem ninguém o ver, e sonhar com o mundo enorme das actrizes lindas e vaporosas, que um dia lhe iriam tirar o sono quando batesse pela ultima vez a porta da frente e abalasse para o novo-mundo.

- Mr. Almeida! Mister Almeida, can you please answer this call?! Acordou, ainda de calções de peitilho, estremunhado e percebeu que se tinham passado de repente 47 anos e ali estava ele, a cochilar numa cadeira de realizador com o apelido em letras gordas a marcar-lhe as costas, cheio de pó-de-arroz e de espada na bainha. Pegou no telefone.

- Hello, this is Almeida.
- Menino Joaquim?...É a Matilde. Como vai o menino? Desculpe ligar a esta hora para lhe dar esta notícia... Fez-se silêncio. Um silêncio comprido de ciprestes com cheiro a morte e a desgraça. Passaram-lhe, de sopetão pela cabeça as tias velhas, as rugas, os achaques, os andarilhos e temeu o pior.

- Diz Matilde! Que é que aconteceu desta vez?
- Oh menino Joaquim, nem imagina...uma tristeza enorme, uma ecatombe, o fim-do-mundo cá na terra...
- Desembucha mulher! E a Matilde lá lhe contou da desgraça. Por entre soluços e arranques lá lhe disse que se tinha finado o Artúrico, o homem que desde o principio dos tempos tratava das portas da rua do Imaginário e que agora, sem ele a tomar conta, iam ficar para sempre abertas.

- Um holocausto, menino Joaquim. Sem portas na rua nunca mais se vai poder sonhar acordado aqui na terra...uma catástrofe... E nesse preciso instante, num ápice, num micronésimo de segundo, Joaquim estremeceu por dentro e percebeu por que razão estava ali agora, a 12.000 quilómetros de distância, rodeado de estrelas e com uma estúpida capa de Zorro a cobrir-lhe as pernas. Percebeu que só ali tinha chegado porque tinha sido naquela rua do Imaginário que sorveu as actrizes das revistas, naquelas benditas idas ao barbeiro. E daí, dos sonhos e do papel, as trouxe à vida para lhe tatuarem a pele. Percebeu que foi dali que partiu um dia, num estalar de dedos, para aterrar ali, exatamente ali onde estava agora, rodeado de holofotes e saltos-altos.
Bendito Artúrio que lhe deixou entrar aqueles sonhos todos na barbearia do Mestre Ignácio em plena luz do dia. Que bom que é sonhar acordado. Que bom.

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