segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Travessa de Santa Marta

Descia, gaiata, a rua enquanto saboreava na ponta da língua as ultimas palavras da noite. Eram para aí três da manhã e aqueles últimos minutos de conversa com o João, ali à porta do 34, tinham-lhe tirado o sono. Regressava a casa só, abanando as ancas impeciente e procurando a sua sombra, ora grande, ora pequena, no chão negro da calçada. Saltitava da direita para a esquerda, brincando consigo, dividida entre o saber que não e a vontade inabalável do sim. Esperava que aquele passeio, só por si, lhe desse o embalo para a acalmia. para que depois, um simples chá de camomila, lhe fizesse o resto até ao amanhecer. Mas não. Definitivamente aquele ar fresco que agora lhe subia pelas pernas não era suficiente para lhe apagar o incêndio ateado no 34 da Porta de Moura. Sorriu e imaginou-se a ligar o 112. Bombeiros. A Protecção Civil a declarar um amarelo de perigo. Um vermelho de sangue. Urgência publicada no eco de cada um daqueles passos a acordar as gentes. Imaginou que se assomavam às janelas, sonolentas, de balde na mão, extintor. E lhe jorravam por cima a desvontade.

- Atirem-me água fresca! Implorou e sorriu-se para si ao virar mais uma esquina. Fervilhava por dentro. E pouco mais havia a fazer que engolir em seco. Era impossível consumar aquilo. Tarde de mais para dar meia volta. Estava quase a chegar a casa, ao número 20 da Travessa de Santa Marta. Mas a vontade estava a dar cabo dela. Não sabia mais o que fazer. Subitamente ouviu a badalada seca do relógio da Sé. Uma única badalada. Providencial. Um acordar dos sentidos. Eram exactamente três e um quarto da manhã. Realizou, com um suspiro vindo do fundo de si, que afinal ainda não tinha passado assim tanto tempo. Que não era tarde. Que chegaria provavelmente a horas de os encontrar e deixar que o prazer desfizesse o resto.

- Que se lixe o decoro e as boas maneiras das dietas da carne! E assim, acometida pela tentação anunciada pela pancada solitária do sino da Sé, percebeu que não era demasiado tarde para voltar atrás. Deu meia volta e correu. Correu. Correu muito. Correu até quase se lhe acabar o fôlego. E ao chegar à Porta de Moura, rasgou-se por dentro de vontade ao perceber que ainda lá estavam todos à sua espera. Disponíveis, inebriantes e quentes. Sem pedir licença entrou de rompante no 34. Despiu-se de pruridos e mandou-se a eles. Atafulhou a boca toda, numa orgia sem igual, de pastéis-de-nata acabadinhos de fazer. Ouviu as duas badaladas no sino da Sé ali ao lado. Agora sim. Podia ir dormir com os sentidos em sossego, não havia mais fome que lhe tirasse o sono.

1 comentário:

  1. Adorei este, lindo, quente, sensual...e o final surpreendente. Está demais.
    R

    ResponderEliminar