terça-feira, 21 de julho de 2009

Travessa da Anna da Silva


Acabara de desligar o telefone e sentiu cair uma lágrima. Uma única lágrima grossa pelas faces, lívidas da notícia que acabara de chegar. Uma tragédia, o fim-do-mundo, uma ecatombe. Um formigueiro subiu-lhe pelas pernas acima. Uma estranha leveza, um arrepio no baixo ventre e não teve outro remédio senão deixar-se cair na senhorinha desconfortável da avó, que estava encostada desde 1824 à parede do corredor dos quartos da casa velha da travessa. 67 anos sem sequer uma noticiazinha, uma carta, um telegrama, um pombo-correio que fosse. Uma vida inteira a achar que ele se tinha passado para o lado-de-lá, no naufrágio fatal ao largo da Madeira. Notícia de primeira-página dias a fio, em todo o lado. Meses na capa do Diário do Sul, com conversas e demandas e diz-que-disse até a coisa morrer por falta de alimento, sem se perceber bem como. Depois disso nunca mais se falou no assunto. 67 anos a acordar a meio da noite, assombrada pelo fantasma do seu Manoelinho que lhe aparecia nos sonhos e a deixava com suores em bica e as faces ruborizadas dum nunca acabar de prazer que nunca sequer tinha sentido. Anos a fio na abstinência de rendas de bordados, de véu preto de viúva nas missas da Sé, com a piedade das amigas por perto nos chás da caridade. 67 anos de viuvez e agora isto. Um telefonema a meio da tarde e uma vida inteira pelo ralo da varanda, sugada pelo fundo dos tempos. Era agora que Manoelinho tinha desaparecido. Qual naufrágio, qual carapuça. Só agora. Para o quinto dos infernos, depois da bandidagem de ter dado à costa, soube-o também, lá em Porto Santo, onde dedicou, diligentemente, uma vida cheia aos arranjos florais e outras delicadezas de mãos finas, deixando agora só, inconsolável e viúvo o Gilberto Valdevinos, que teve o infeliz desplante de lhe dar de viva voz a noticia do seu fim, por entre soluços e saudades. Anna da Silva não suportou mais. Naufragou ali mesmo num suspiro de vergonha e foi apressada para o céu, desvairada e decidida a dar cabo das finuras do artista que lhe desgraçou a vida.

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